“Contenham esse avanço... Façam qualquer coisa, por menor que seja... Mantenham aberta ainda que seja uma só porta dentre cem, pois conquanto que tenhamos pelo menos uma porta aberta, não estaremos numa prisão.”
(G.K.C)

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

A Mitologia segundo Chesterton


O texto abaixo trata-se de um resumo através de trechos do capitulo do livro O Homem Eterno, em que Chesterton fala sobre a mitologia. Seu ponto de vista é que a mitologia é poesia e não alegoria, refutando, assim, as argumentações que tendem a classificá-la com precursora da religião. É uma argumentação forte e poética e, principalmente, uma análise profundamente psicológica.


Todo esse assunto mitológico pertence à parte poética dos homens. Parece estranhamente esquecido hoje em dia o fato de que um mito é fruto da imaginação e, portanto, uma obra de arte. Requer-se um poeta para criá-lo. Requer-se um poeta para criticá-lo. Há no mundo mais poetas que não-poetas, como se comprova pela origem popular dessas lendas. Mas por alguma razão que nunca vi explicada, apenas a minoria não poética tem permissão de escrever estudos críticos desses poemas populares. Nós não submetemos um soneto a um matemático ou uma canção a um especialista em cálculos; mas acalentamos a ideia igualmente fantástica de que o folclore pode ser tratado como uma ciência. Se essas coisas não forem apreciadas do ponto de vista artístico, elas simplesmente não serão apreciadas. Quando o catedrático ouve o polinésio lhe dizer que outrora não existia nada exceto uma grande serpente emplumada, se o erudito não se sentir emocionado e meio tentado a desejar que isso fosse verdade, ele absolutamente não é um juiz dessas coisas. Quando lhe asseguram, com base na melhor autoridade dos peles-vermelhas, que um herói primitivo carregou o sol e a lua e as estrelas dentro de uma caixa, se ele não bater palmas e espernear como faria uma criança diante de uma fantasia tão encantadora, ele não sabe nada sobre o assunto.
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A mitologia é uma arte perdida, uma das poucas artes que estão realmente perdidas; mas é uma arte.
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Além disso, mesmo quando as fábulas são inferiores como arte, elas não podem ser julgadas apropriadamente pela ciência, e são ainda menos apropriadamente julgadas como ciência. Alguns mitos são muito rudes e estranhos como os primeiros desenhos de uma criança; mas a criança está tentando desenhar. Apesar disso é um erro tratar seus desenhos como se fossem ou como se pretendessem ser um diagrama. O estudioso não pode formular uma afirmação científica sobre o selvagem, porque o selvagem não está fazendo uma afirmação científica sobre o mundo. O que ele está dizendo é algo muito diferente: é aquilo que se poderia chamar de fofoca dos deuses. Podemos dizer, se preferirmos, que é algo em que se crê antes que haja tempo para examiná-lo. Estaria mais de acordo com a verdade dizer que é aceito antes que haja tempo para crer nele. Confesso que duvido de toda a teoria da disseminação de mitos ou (como geralmente acontece) de um único mito. É verdade que algo em nossa natureza e condição torna similares muitas histórias; mas cada uma delas pode ser original. Um indivíduo não toma emprestada uma história de outro indivíduo, embora ele possa contá-la pelo mesmo motivo do outro. Seria fácil aplicar toda argumentação sobre lendas à literatura e transformá-la numa vulgar obsessão de plágio.
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Todavia, todo o problema é causado por quem tenta analisar essas histórias de um ponto vista externo, como se fossem objetos científicos. É preciso analisá-las apenas de um ponto de vista interno e perguntar-se como deveria começar uma história. Ela pode começar com qualquer coisa e tomar qualquer direção. Pode começar com um pássaro sem que esse pássaro seja um totem; pode começar com o sol sem que esse sol seja um mito solar. Dizem que há apenas dez enredos no mundo; e neles sem dúvida haveria elementos comuns recorrentes. Faça dez mil crianças falarem ao mesmo tempo contando lorotas sobre o que elas viram num passeio pela floresta, e não será difícil encontrar paralelos sugerindo o culto do sol ou o culto de animais. Algumas das histórias podem ser bonitas, algumas tolas e algumas talvez indecentes; mas elas só podem ser julgadas como histórias. Em um dialeto moderno, elas só podem ser julgadas do ponto de vista estético. É estranho que a estética, ou o mero sentimento, que agora tem a permissão para usurpar espaços a que ela não tem nenhum direito, para demolir a razão com o pragmatismo e a moral com a anarquia, não tenha permissão para emitir um julgamento puramente estético sobre aquilo que obviamente é apenas uma questão estética. Podemos ser fantasiosos acerca de tudo, excetuadas as lendas?
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Os mitos não são alegorias. As forças naturais nesse caso não são abstrações. Não é como se houvesse um Deus da Gravitação. Pode existir um gênio das quedas d água, mas não do simples cair, muito menos da simples água. A personificação não está relacionada a algo impessoal. O ponto principal é que a personalidade aperfeiçoa a água com significado. Papai Noel não é uma alegoria da neve e do pinheiro; ele não é simplesmente a substância chamada neve que depois recebe artificialmente uma forma humana, como o boneco de neve. É algo que confere um novo significado ao mundo branco e às plantas sempre-verdes; de modo que a própria neve parece quente em vez de fria. O teste, portanto, é puramente imaginativo. Mas imaginativo não significa imaginário. Não resulta que seja tudo aquilo que os modernos chamam de subjetivo, e com isso eles querem dizer falso. Todos os verdadeiros artistas, consciente ou inconscientemente, sentem que estão tocando verdades transcendentais; que suas imagens são sombras de coisas vistas através de um véu. Em outras palavras, o místico natural de fato sabe que existe algo ali-, algo por trás das nuvens ou dentro das árvores; mas ele acredita que a maneira de encontrá-lo está na busca da beleza; que a imaginação é uma espécie de encantamento que pode evocá-lo.
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Mas nós não sabemos o que essas coisas significam, simplesmente porque não sabemos o que nós mesmos significamos quando somos tocados por elas. Suponha-se que alguém numa história diga: “Arranque esta flor, e uma princesa morrerá num castelo do outro lado do mar". Nós não sabemos por que alguma coisa se agita no subconsciente, ou por que aquilo que é impossível parece quase inevitável. Suponha-se que leiamos: “E na hora em que rei apagou a vela seus navios foram a pique na distante costa das Hébridas". Nós não sabemos por que a imaginação aceitou a imagem antes que a razão pudesse rejeitá-la; ou por que essas correspondências parecem de fato corresponder a alguma coisa na alma. Coisas muito profundas em nossa natureza, alguma vaga sensação de que grandes coisas dependem de coisas pequenas, alguma sombria sugestão de que as coisas mais próximas de nós se estendem muito além de nosso poder, algum sentimento sacramental da magia presente nas substâncias materiais, e muitas outras emoções que se desfizeram estão presentes numa ideia como essa da alma exterior. O poder mesmo nos mitos dos selvagens é como o poder das metáforas dos poetas. A alma de uma dessas metáforas com muita frequência é enfaticamente uma alma exterior.
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Esses são os mitos, e quem não compreende os mitos não compreende os homens.
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Mas quem melhor compreender os mitos perceberá mais plenamente que eles não são e nunca foram uma religião, no sentido em que o cristianismo e até mesmo o islamismo são religiões. Eles satisfazem algumas das necessidades de uma religião, principalmente a necessidade de fazer certas coisas em certas datas, a necessidade das ideias gêmeas de festividade e formalidade. Mas, embora deem ao homem um calendário, não lhe dão um credo. Não houve alguém que se levantasse e dissesse: “Eu creio em Júpiter e em Juno e Netuno" etc., como quem se levanta e diz: “Eu creio em Deus, Pai todo-poderoso” e o restante do credo dos Apóstolos. Muitos acreditaram em alguns mitos e não em outros, ou mais em alguns e menos em outros, ou então em qualquer um deles, mas apenas num sentido poético muito vago. Não houve um momento em que todos os mitos foram coligidos numa ordem ortodoxa que os homens haveriam de defender lutando e enfrentando torturas.
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A mitologia buscava a verdade por meio da beleza, no sentido de que a beleza inclui muito da mais grotesca feiura. Mas a imaginação tem suas próprias leis e, portanto, seus próprios triunfos, que nem teólogos nem cientistas conseguem entender. Ela permaneceu fiel àquele instinto imaginativo através de mil extravagâncias, através de todas as toscas pantomimas cósmicas de um porco comendo a lua ou de o mundo sendo extraído de uma vaca, através de todas as estonteantes convoluções e malformações místicas da arte asiática, através de toda a nua e crua rigidez dos retratos egípcios e assírios, através de todos os espelhos rachados da arte disparatada que parecia deformar o mundo e deslocar o céu, ela permaneceu fiel a alguma coisa sobre a qual não se pode discutir; alguma coisa que possibilita que algum artista de alguma escola pare de repente diante uma deformidade particular e diga: “Meu sonho se realizou”. Por isso nós de fato sentimos que os mitos pagãos ou primitivos são infinitamente sugestivos, desde que sejamos sábios o bastante para não indagar o que eles sugerem. Por isso todos nós sentimos o que significa o roubo do fogo do céu por parte de Prometeu, até que algum pedante pessimista ou progressista venha a nos explicar o que ele significa. Por isso todos nós sabemos qual é o significado de João e o Pé de Feijão, até que nos venham dizê-lo. Nesse sentido é verdade que são os ignorantes que aceitam mitos, mas apenas porque são os ignorantes que apreciam poemas.
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Numa palavra, a mitologia é busca; é algo que combina um desejo recorrente com uma dúvida recorrente, misturando uma sinceridade ávida ao extremo na ideia de achar um lugar, com uma leviandade extremamente sombria e profunda e misteriosa em relação a todos os lugares encontrados. Até esse ponto a solitária imaginação pôde levar, e mais tarde devemos dirigir nossa atenção para a solitária razão. Nunca, em ponto algum ao longo dessa estrada, as duas viajaram juntas. É ali que todas essas coisas diferiram da religião ou da realidade em que essas diferentes dimensões se juntaram formando uma espécie de sólido. Diferiram dessa realidade não naquilo que elas pareciam, mas naquilo que eram. Um quadro pode parecer uma paisagem; pode parecer em cada detalhe exatamente uma paisagem. O único detalhe em que difere é que ele não é uma paisagem. A diferença é apenas aquela que separa um retrato da rainha Elizabelh da rainha Elizabeth. Somente nesse mundo mítico e místico o retrato pôde existir antes da pessoa; e o retrato era por isso mais vago e duvidoso. Mas qualquer pessoa que tenha sentido a atmosfera desses mitos e dela tenha se alimentado saberá o que quero dizer quando afirmo que em certo sentido eles não professam realmente ser realidades.
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Os sonhos de fato tendem a ser muito vívidos quando tocam essas coisas delicadas ou mágicas que realmente podem fazer um dormente acordar com a sensação de que seu coração se partiu durante o sono. Eles tendem sempre a girar em volta de certos temas emocionantes de encontros e despedidas, de uma vida que termina em morte ou de uma morte que é o começo da vida. Deméter perambula por um mundo aflito a procura de uma criança roubada; ísis em vão estende os braços sobre a terra para recolher os membros de Osíris; e há lamentações sobre as colinas por Átis e nos bosque por Adônis. Mistura-se a todas essas lamentações a profunda e mística sensação de que a morte pode ser uma libertação e um apaziguamento; de que uma morte assim nos dá um sangue divino para um rio renovador e de que todo o bem se encontra na reconstituição do dilacerado corpo divino. Podemos na verdade chamar essas coisas de prefigurações, desde que não nos esqueçamos de que prefigurações são sombras. E a metáfora de uma sombra incidental atinge com muita exatidão a verdade que é vital aqui. Pois uma sombra é uma forma; algo que reproduz a forma, mas não a textura. Essas coisas eram algo como a coisa real; e dizer que “eram como” é dizer que eram diferentes. Dizer que algo é como um cachorro é outra maneira de dizer que não é um cachorro; e é nesse sentido de identidade que um mito não é um homem. Ninguém realmente pensava em Ísis como um ser humano; ninguém realmente pensava em Deméter como uma personagem histórica; ninguém pensava em Adônis como o fundador de uma Igreja. Não havia nenhuma ideia de que algum deles houvesse mudado o mundo; mas antes havia a ideia de que sua recorrente morte e vida continham o triste e belo bordão da imutabilidade do mundo. Nenhum deles foi uma revolução, exceto no sentido da revolução do sol e da lua. Todo o significado deles se perde se não virmos que eles significam as sombras que somos nós e as sombras que nós perseguimos. Em certos aspectos sacrificais e comunitários eles naturalmente sugerem que espécie de deus poderia satisfazer aos homens: mas não afirmam que estão satisfeitos. Quem afirmar que eles o fazem não sabe avaliar poesia.
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É total falta de delicadeza para com os famintos provar que a fome é igual à comida. É falta de boa compreensão para com os jovens argumentar que a esperança destrói a necessidade de felicidade. E é absolutamente irreal argumentar que essas imagens na mente, admiradas por inteiro na sua forma abstrata, estavam no mesmo mundo dos homens vivos, de uma sociedade viva, e eram adoradas por serem concretas.
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Nós sabemos das coisas melhor que os intelectuais, mesmo aqueles dentre nós que não são intelectuais, sabemos o que havia naquele grito que foi emitido sobre o morto Adônis e sabemos por que a Grande Mãe fez uma filha casar-se com a morte. Nós entramos mais profundamente nos Mistérios Eleusinos e passamos a um grau mais alto, no qual um portão dentro de um portão guardava a visão de Orfeu. Nós conhecemos o sentido de todos os mitos. Conhecemos o último segredo revelado ao perfeito iniciado. E não é a voz de um sacerdote ou um profeta dizendo: “Essas coisas existem”. É a voz de um sonhador e um idealista gritando: “Por que essas coisas não são possíveis? ”

Fonte: O Homem Eterno, G. K. Chesterton, Editora Mundo Cristão, Tradução: Almiro Pisetta.