“Contenham esse avanço... Façam qualquer coisa, por menor que seja... Mantenham aberta ainda que seja uma só porta dentre cem, pois conquanto que tenhamos pelo menos uma porta aberta, não estaremos numa prisão.”
(G.K.C)

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Em defesa da Idade Média

Chesterton
É bastante natural que os homens prósperos de nosso tempo desconheçam a história. Se a conhecessem, conheceriam a ridícula história de como se tornaram prósperos. É bastante natural, digo, que eles não saibam história: mas por que eles pensam que sabem? Eis aqui uma opinião tirada a esmo de um livro escrito por um dos mais cultos dentre nossos jovens críticos, uma opinião muito bem escrita e de todo confiável em seu próprio tema, que é um tema moderno. Diz o escritor: "Existiu pouco avanço social ou político na Idade Média até a Reforma e a Renascença". [....] Tudo isto está bem; Mas por que, ao escrever sobre algo que não teria existido na Idade Média, deveria ele dogmatizar sobre uma história que ele evidentemente não conhece? No entanto, esta pode tornar-se uma história muito interessante.

Conceba um jovem comum, jornalista bem educado ou homem de letras de uma escola pública ou faculdade quando pára em frente de uma coleção ainda maior de livros ainda maiores das bibliotecas da Idade Média - digamos, todos os volumes de Sto. Tomás de Aquino. Eu digo que, de nove chances em dez, aquele jovem bem-educado não sabe o que irá encontrar naqueles volumes em capa de couro. Ele pensa que iria encontrar discussões sobre a capacidade dos anjos de se equilibrarem na ponta de agulhas. Mas eu digo que ele não sabe que iria encontrar um Escolástico discutindo quase todas as coisas que Herbert Spencer discutiu: política, sociologia, formas de governo, monarquia, liberdade, anarquia, propriedade, comunismo, e todas as noções várias que estão em nosso tempo brigando pelo tempo do "Socialismo".

Imagine o homem moderno (o infeliz homem moderno) que levou um volume de teologia medieval para a cama. Ele esperaria encontrar um pessimismo que não está ali, um fatalismo que não está ali, um amor ao barbaresco que não está ali, um desprezo da razão que não está ali. Deixemo-lo tentar. Faria a ele uma de duas boas coisas: ou o faria dormir, ou o faria acordar.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Uma fábula real

Muitos menosprezam as fábulas por serem absurdas, porém é justamente por serem absurdas, que eu acredito nelas, pois o mundo é todo um absurdo. Quando observo, por exemplo, o amor entre um homem e uma mulher, percebo que muitos começam num feliz absurdo, que, de repente, se realiza, como aconteceu na história em que um sapo se transformou em príncipe depois de um beijo. Também, muitos terminam com um absurdo, um terrível absurdo, como na história do desmoronamento de todo um castelo, ao simples estilhaçamento de um amuleto. Porém, a mais excêntrica de todas as fábulas é a do próprio homem, que carrega dentro de si o absurdo dos absurdos, que é sua memória, cuja perenidade desafia todos os tempos, guardando, para o resto da vida, o gosto daquele beijo transformador e a imagem daquele majestoso castelo ainda erguido.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Panis et circus


Ainda hoje se pratica o que na Roma Antiga chamava-se política do panis et circus. O objetivo continua o mesmo, o entretenimento da platéia.

Um antigo político romano recomendaria a mesma estratégia que hoje seguem nossos políticos atuais: “Dê ao povo abundância de desportos, como torneios e corridas de cavalos, porque a democracia se preocupa muito mais com a desigualdade entre cavalos, do que com a igualdade entre os homens”.

Por que Lewis e Chesterton?

Porque foram os dois escritores modernos que mais se destacaram no duelo contra as incongruências da modernidade e contra as modernas filosofias que, até hoje, querem suplantar o bom-senso.

Não as perseguiram com espadas, mas com suas penas, que brandiam como uma arma. E nessa extraordinária questão, desvelaram energia de real eloquência, de lógica e de vívido entusiasmo, concentrando-se sobre enganos difundidos e dissolvendo, com deslumbrante lucidez, aparentes contradições.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

A falácia do sucesso


Dedico esta postagem aos autores dos best-sellers de auto-ajuda.


G. K. Chesterton
All Things Considered (1909)
Tradução por Agnon Fabiano

Tem surgido no nosso tempo, um tipo em particular de livros e de artigos que creio sinceramente e solenemente, podem ser chamados de os mais imbecis que a humanidade tem conhecido. Eles são mais excêntricos do que os mais extravagantes romances de cavalaria e muito mais enfadonhos do que os mais cansativos tratados religiosos. Com o agravante de que os romances de cavalaria eram, pelo menos, sobre cavalaria, e os tratados religiosos eram sobre religião. Essas coisas, no entanto, são sobre coisa alguma; são sobre algo chamado Sucesso.

Em cada estante, em cada revista, você encontra obras ensinando às pessoas como serem bem-sucedidas. São livros que mostram às pessoas como serem bem-sucedidas em tudo; mas são escritos por pessoas que sequer são bem-sucedidas em escrever um livro. Para começar não existe, naturalmente, essa coisa chamada Sucesso. Ou, se você prefere de outra maneira, não há nada que não seja bem-sucedido. Dizer que uma coisa é bem-sucedida, quer dizer, apenas, que ela é; um milionário é bem sucedido sendo um milionário e um jumento é bem sucedido sendo um jumento. Qualquer homem vivo é bem-sucedido em manter-se vivo, e qualquer homem morto pode ter sido bem-sucedido em suicidar-se. Porém, ignorando a má lógica e a má filosofia do conceito, nós podemos tomá-lo, como fazem esses autores, no sentido comum da expressão, que diz que Sucesso é ganhar muito dinheiro ou obter posição social. Esses autores alegam ensinar ao homem comum como ser bem-sucedido em sua profissão ou em seus negócios – se ele é construtor, ter sucesso como construtor; se é corretor da bolsa, ter sucesso como corretor da bolsa. Alegam mostrá-los como, sendo um dono de mercearia, pode tornar-se um iatista profissional; como, sendo um jornalista de décima categoria, pode tornar-se um membro da nobreza; como, sendo um judeu germânico, pode tornar-se anglo-saxão. Isso é uma clara proposta comercial, e eu realmente acho que as pessoas que compram esses livros (se é que alguém os compra) têm o direito moral, senão legal, de pedirem seu dinheiro de volta.

Ninguém ousaria publicar um livro sobre eletricidade que, literalmente, não dissesse nada sobre eletricidade; nenhuma pessoa ousaria publicar um artigo sobre botânica que mostrasse que o autor desconhece qual extremidade da planta cresce para dentro da terra. No entanto, nosso mundo está repleto de livros sobre Sucesso e sobre pessoas bem-sucedidas que, literalmente, não trazem idéia alguma e, dificilmente, trazem qualquer tipo de coerência.

É perfeitamente óbvio que em qualquer ocupação decente como, por exemplo, construir muros ou escrever livros, há somente dois modos sensatos de ser bem-sucedido. O primeiro é fazendo um bom trabalho, o segundo é trapaceando. Ambos são simples demais para requererem qualquer explicação literária. Se você se dedica a salto em altura, ou salte mais alto do que qualquer outra pessoa ou, de alguma forma, aparente que o fez. Se você quer ser bem-sucedido como jogador de bridge, ou torne-se um bom jogador de bridge ou jogue com cartas marcadas. Você pode precisar de um livro sobre salto em altura; você pode precisar de um livro sobre bridge; você pode precisar de um livro sobre como trapacear no bridge. Mas você não precisa de um livro sobre Sucesso. Especialmente você não precisa de um livro sobre Sucesso como os que você encontra, às centenas, espalhados no mercado editorial. Você pode querer saltar ou jogar cartas, mas não vai querer ler declarações estúpidas do tipo "saltar é saltar", ou "jogos são vencidos por vencedores".

Se esses autores, por exemplo, dissessem alguma coisa sobre o sucesso no salto em altura, soaria como algo assim: "O competidor de salto deve ter um objetivo claro diante de si. Ele deve estar determinado a saltar mais alto do que qualquer outro atleta que esteja na mesma competição. Não deve deixar que sentimentos medíocres de compaixão o impeçam de dar o melhor de si. Deve lembrar-se que uma competição de salto é claramente competitiva e que, como Darwin demonstrou gloriosamente, ‘OS MAIS FRACOS IRÃO PARA O PAREDÃO’”. É esse o tipo de coisa que o livro diria, e seria muito útil, sem dúvida, se lida, em voz baixa e tensa, a um jovem atleta, pouco antes de empreender o seu salto.

Ou, supondo que no curso de suas divagações intelectuais, o filósofo do Sucesso examinasse nosso outro caso, o do jogador de cartas, sua estimulante recomendação seria: "No jogo de cartas é inteiramente necessário evitar o erro, comumente cometido por filantropos humanitários e partidários do livre-comércio, de permitir que seu adversário vença o jogo. Você deve ter garra e coragem, e entrar para ganhar. Os dias do idealismo e da superstição já passaram. Vivemos numa época de ciência e de bom senso, e tem-se provado definitivamente que em qualquer jogo em que dois estão competindo, SE UM NÃO VENCE, O OUTRO VENCERÁ". É tudo muito empolgante, naturalmente, mas confesso que se eu fosse jogar cartas, gostaria de ter, de preferência, algum livrinho decente que me ensinasse as regras do jogo. Para além das regras do jogo é tudo uma questão de talento ou desonestidade; e eu me encarregaria logo de munir-me de uma ou de outra – ainda que não diga qual delas.

Folheando uma revista muito popular, deparo-me com um exemplo ao mesmo tempo estranho e cômico. Trata-se de um artigo intitulado "O instinto que faz as pessoas enriquecerem", decorado, em sua primeira página, com um retrato formidável de Lord Rothschild. Existem muitos métodos definidos, tanto honestos quanto desonestos, de enriquecer, mas, que eu saiba, o único "instinto" capaz dessa façanha é o instinto que a teologia cristã chama grosseiramente de "o pecado da ganância". Isso, no entanto, está fora de nossa discussão. Desejo citar os primorosos parágrafos que seguem como exemplo típico do conteúdo dos livros que falam sobre como se alcançar o sucesso. São tão práticos; e deixam pouca dúvida sobre qual deve ser o próximo passo:
O nome Vanderbilt é sinônimo de riqueza no moderno mundo empresarial. Cornelius Vanderbilt, fundador da família, foi o primeiro dos grandes magnatas do comércio norte-americano. Ele começou como o filho de um fazendeiro pobre, tendo terminado como multimilionário no século XX.

Ele tinha o instinto de fazer dinheiro. Agarrava suas oportunidades, oportunidades que surgiram com aplicação da máquina a vapor no tráfego marítimo e com o desenvolvimento do transporte ferroviário num rico, porém ainda subdesenvolvido, Estados Unidos da América. Conseqüentemente, ele acumulou uma enorme fortuna.

É evidente que nós não podemos seguir exatamente os mesmos passos desse grande rei das ferrovias. As oportunidades particulares que surgiram para ele não se aplicam a nós. As circunstâncias mudaram. Porém, mesmo assim, podemos, em nossas próprias circunstâncias, aplicar seus métodos gerais. Nós podemos agarrar as oportunidades que nos aparecem, dando a nós mesmos uma boa oportunidade de alcançarmos a riqueza.
É em declarações bizarras como essas, que podemos ver com clareza o que está realmente por trás de todos os artigos e livros dessa natureza. Não é mero negócio; não se trata nem mesmo de puro cinismo. Trata-se de misticismo, o horrendo misticismo do dinheiro. O autor dessa passagem não tem a menor idéia do que Vanderbilt fazia com seu dinheiro, ou de como qualquer outra pessoa pode fazer do seu próprio. Ele, porém, conclui suas observações defendendo um método; e é um programa que não tem absolutamente nada a ver com Vanderbilt. Simplesmente desejava prostrar-se diante do mistério de um multimilionário. Porque quando nós cultuamos alguma coisa, amamos não apenas sua clareza, mas também sua obscuridade. Nós nos alegramos em sua invisibilidade. Assim, por exemplo, quando um homem está apaixonado por uma mulher, ele tem um prazer especial no fato de que as mulheres sejam incompreensíveis. Da mesma forma o poeta piedoso, ao celebrar o Criador, encontra prazer em afirmar que Deus age de modos misteriosos.

Ora, o autor dos parágrafos que citei não parece ter coisa alguma a ver com um deus, e eu não acredito (julgando pela sua enorme impraticabilidade) que ele alguma vez tenha se apaixonado verdadeiramente por uma mulher. Mas a coisa que ele realmente venera – Vanderbilt – ele trata dessa maneira mística. Ele se deleita no fato de que sua divindade, Vanderbilt, esconda algum segredo dele. E sua alma enche-se de uma espécie de arrebatamento de astúcia, um êxtase de clericalismo, quando ele finge estar revelando à multidão o terrível segredo que ele mesmo desconhece.

Falando do instinto que enriquece as pessoas, o mesmo autor observa:

Na Antiguidade a existência do instinto que enriquece as pessoas, era inteiramente compreendida. Os gregos reverenciavam esse instinto na história de Midas, do “Golden Touch”, um homem que transformava em ouro tudo que tocava. Sua vida foi uma jornada em meio a riqueza: tudo que aparecia no seu caminho ele transformava em metal precioso. "Uma lenda tola", diziam os sabichões da era vitoriana; "uma verdade", dizemos nós, hoje em dia.
Todos conhecemos homens como esse. Estamos constantemente encontrando ou lendo sobre gente que transforma em ouro tudo que toca. O sucesso segue essas pessoas como um cachorro segue seu dono. Suas vidas são uma trajetória infalível de ascensão. São incapazes de fracassar.

Infelizmente, no entanto, Midas era capaz de fracassar – e fracassou. Sua vida não foi uma trajetória infalível de ascensão. Morreu de fome porque sempre que tocava um biscoito ou um sanduíche de presunto eles transformavam-se em ouro. Essa era moral da história, embora o autor a tenha ocultado sutilmente, talvez pelo fato de estar escrevendo bem perto do retrato de Lord Rotschild.

As velhas fábulas da humanidade são, de fato, insondavelmente sábias, mas não devemos emendá-las para proteger os interesses do Sr. Vanderbilt. Não devemos ter o rei Midas representado como exemplo de sucesso. Ele foi um fracasso de um tipo raro e penoso. E tinha, além disso, orelhas de burro. Também, (como muitas outras pessoas famosas e prósperas) ele esforçava-se em esconder essa condição. Foi seu barbeiro, se não me engano, o único a conhecer essa peculiaridade; e esse barbeiro, em vez de comportar-se como uma pessoa esperta da escola do Sucesso-a-todo-custo e tentar chantagear o Rei Midas em troca do sigilo, foi, de outra forma, sussurrar esse extravagante segredo aos juncos, que se deleitaram enormemente em sabê-lo. Conta-se que os juncos “cantavam” o segredo sempre que recebiam vento, espalhando a história pelo reino.

Olho com reverência para o retrato de Lord Rothschild; leio com reverência sobre as façanhas do Sr. Vanderbilt. Sei que não posso transformar em ouro tudo o que toco; porém sei também que é porque nunca tentei, pois prefiro outras substâncias, coisas como grama e um bom vinho. Sei que essas pessoas, sem dúvida, obtiveram sucesso em alguma coisa; sei que certamente superaram alguém; sei que são reis, de uma forma que nenhum rei foi antes; sei que criam mercados e cavalgam continentes. Porém parece-me sempre que há algum pequeno fato de sua privacidade que vivem escondendo, e penso, por vezes, ouvir no vento o riso e o sussurro dos juncos.

Por fim, resta-nos esperar que vivamos o suficiente, para vermos esses livros absurdos sobre Sucesso, cobertos com o escárnio e o menosprezo que eles merecem. Não ensinam as pessoas a serem bem-sucedidas, mas as ensinam a serem esnobes; espalham uma espécie de poesia maligna de materialismo.

Os puritanos denunciam continuamente os livros que inflamam a lascívia. O que deveríamos dizer dos livros que inflamam as paixões mais vis da ganância e do orgulho?

Há cem anos tínhamos o ideal do Aprendiz Esforçado. Dizia-se aos meninos que com frugalidade e empreendedorismo podiam chegar todos a Senhores da Nobreza. Era mentira, mas era uma mentira viril, e possuía um mínimo de verdade moral. Em nossa sociedade a temperança não ajudará um pobre a enriquecer, mas poderá ajudá-lo a olhar para si mesmo com respeito. Um bom trabalho não fará dele um homem rico, mas um bom trabalho fará dele um bom trabalhador. O Aprendiz Esforçado surgiu de virtudes que eram escassas e estreitas, mas ainda assim virtudes. Mas o que dizer do evangelho pregado ao novo Aprendiz Esforçado – o aprendiz que não ascende por meio de suas virtudes, mas declaradamente através de seus vícios?

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Às traças

Um bicho que se alimenta de livros mostra até um gosto refinado e superior na dieta.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

O amor à leitura


Dedicatória

Há escritores que são verdadeiros profetas e verdadeiros historiadores. Falam do passado como se tivessem participado dos fatos - de todos os planos, das guerras, das vitórias e das derrotas. Do futuro, falam como se de lá, acabassem de chegar. Há escritores que são contemporâneos de todos os tempos! A estes, procuro dedicar minha atenção.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Ofensa

Aprendi com Lewis que de 100 vezes que nos sentimos ofendidos por alguém, 99 das vezes o ofensor não tinha a intenção de ofender, ou sua ofensa não foi planejada para ser tão grande quanto a encaramos. Isso pode ser verificado quando somos nós o ofensor. Quando realmente queremos ferir alguém, não é raro que a pessoa nem se dê conta da nossa ofensa, mas em muitos casos em que não tínhamos a intenção de ofender, descobrimos que a pessoa ficou bastante ofendida.

O homem apaixonado

O homem apaixonado, junto de sua amada é um poeta, porque tem a harmonia dentro de si. Longe de sua amada é um herói, porque vence, dia a dia, o sofrimento que tal solidão enseja.

A emoção

Até onde sei a razão origina-se no meu cérebro. Os conectivos, os pormenores, a lógica, a coerência... tudo é medido e pesado até se formar a idéia racional.

Mas de onde vem a emoção? Onde se origina essa sensação que desconsidera o mundo dos possíveis para entrar em um mundo mais vasto, onde o que importa não é o “se pode ser”, mas simplesmente o “ser”. De onde ela vem? Como despista nossa racionalidade ignorando tempos e distâncias?

Ah... pouco me importa!

Só a quero continuar sentindo...

“Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido” (Clarice Lispector).

Paradoxo do sonho

Sonhei que estava dormindo...
Acordei!
Mas ainda estava sonhando...

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Os perigos da amizade

C. S.Lewis

No momento em que duas pessoas se tornam amigas, elas de uma certa forma se isolam das demais. [....] A comunidade pode até repeli-las e suspeitar delas. Os líderes no geral fazem isso. Os diretores de escolas, os administradores de comunidades religiosas, os capitães de navios, podem sentir-se preocupados quando surgem amizades fortes entre pequenos grupos de seus agregados.

[....] O conceito que valoriza a coletividade acima do indivíduo necessariamente também desacredita a Amizade; ela é uma relação entre homens em seu mais alto nível de individualidade. Isola os homens do “conjunto” como a própria solidão poderia fazê-lo; e mais perigosamente ainda, pois os isola em grupos de dois ou três [....] Dizer, “Estes são meus amigos” é o mesmo que dizer, “Estes não são”.

Todo nome que dão a um círculo de amizade é quase sempre depreciativo. Na melhor das hipóteses chamam-no de “grupo”, “roda”, “gang” [....] Os que só conhecem pessoalmente a Afeição, o Companheirismo e Eros consideram os Amigos como “pedantes convencidos que se julgam bons demais para nós”. Esta é naturalmente a voz da inveja, mas ela sempre faz a acusação mais verdadeira...

[....] Sozinho, entre companheiros que não me compreendem, eu mantenho certos padrões e pontos de vista timidamente, um tanto envergonhado por admiti-los e um tanto duvidoso de que possam ser certos. Mas basta estar de volta aos meus Amigos e em meia hora, ou mesmo dez minutos, esses mesmos padrões e conceitos se tornam de novo indiscutíveis. A opinião desse pequeno circulo, enquanto estou nele, supera a de mil outras pessoas: à medida que a amizade se robustece, me sentirei assim, mesmo quando meus amigos estão distantes, pois todos queremos ser julgados por nossos iguais, por aqueles que são “segundo o nosso coração”.

Apenas estes conhecem na verdade nossos pensamentos e só eles julgam segundo padrões que reconhecemos. É deles o louvor que cobiçamos e a censura que tememos.

[....] É fácil ver, portanto, por que as autoridades não vêem com bons olhos a Amizade. Cada amizade verdadeira é uma espécie de secessão, e mesmo rebelião. Pode ser uma rebelião de pensadores sinceros contra erros aceitos ou de maníacos contra o bom senso aceito; de verdadeiros artistas contra a arte popular inferior, ou de charlatões contra o gosto civilizado; de homens bons contra a maldade social ou de homens maus contra a bondade. Qualquer que seja ela, não irá agradar os que estão Em Cima.

Os homens que possuem amigos fiéis são menos fáceis de manejar ou “alcançar”; mais difíceis de corrigir por parte das boas autoridades e de corromper por parte das más. Assim sendo, se nossos senhores [....] de maneira sutil [....] vierem a ter êxito em produzir um mundo em que todos são Companheiros e ninguém é Amigo, terão removido alguns perigos, e terão também tirado de nós aquilo que é quase nossa mais forte proteção contra a servidão absoluta.

Os perigos porém são perfeitamente reais. A Amizade (como os antigos descobriram) pode ser uma escola de virtude; mas também (como não perceberam) uma escola de vício. Ela é ambivalente. Torna melhores os homens bons e piores os maus.

Fica evidente que o elemento de divisão, de indiferença ou surdez (pelo menos em alguns assuntos) às vozes do mundo exterior, é comum a todas as amizades, sejam elas boas, más, ou simplesmente inócuas. Mesmo que a base comum da amizade não seja nada mais momentoso do que colecionar selos, o círculo correta e inevitavelmente ignora a opinião de milhões que a consideram como uma ocupação tola, e dos milhares que são apenas diletantes [....] Da mesma forma que sei que eu seria um intruso num círculo de golfistas, matemáticos ou motoristas, reivindico o mesmo direito de considerá-los intrusos no meu.

As pessoas que aborrecem umas às outras devem encontrar-se poucas vezes, as que interessam uma à outra, muitas vezes. O perigo está em que esta indiferença ou surdez à opinião externa, embora justificada e necessária, pode levar a uma indiferença ou surdez totais [....] A surdez parcial, nobre e necessária, encoraja a surdez total que é arrogante e desumana [....] A surdez parcial e justificável é baseada em certo tipo de superioridade - mesmo que se tratasse de um conhecimento superior a respeito de selos. O senso de superioridade vai então ligar-se à surdez total. O grupo irá desdenhar e ignorar os que se acham fora dele; tornando-se, com efeito, algo muito semelhante a uma classe. Um círculo social é uma aristocracia autonomeada.

[....] Numa boa Amizade cada membro se sente humilde em relação aos demais. Vê que eles são esplêndidos e se julga com sorte por estar entre os mesmos [....] Mas, infelizmente, esses eles, de um outro ponto de vista, são também nós. Assim, a transição da humildade individual para o orgulho corporativo é muito fácil [....] Já vimos isto sendo feito pelos “ veteranos” na escola falando na presença de um aluno novo, ou dois “permanentes” no Exército diante de um “temporário ”; tais pessoas se expressam com grande intimidade a fim de serem ouvidas. Todos os que não fazem parte do círculo precisam saber que não estão nele. A Amizade pode em análise final não ter base alguma, exceto o fato de ser exclusivista. Ao falar a um Estranho, cada membro tem prazer em mencionar os outros pelo primeiro nome ou por um apelido; não apesar de que, mas porque, o Estranho não saberá a quem se refere.

[....] Podemos detectar assim o orgulho da Amizade em muitos círculos de amigos. Seria precipitado supor que o nosso possa estar livre desse perigo, pois, como é natural, exatamente nele é que seríamos mais lentos em reconhecer essa falha.

A amizade é até mesmo angelical, mas o homem precisa ser triplamente protegido pela humildade se quiser comer o pão dos anjos sem risco.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

O naufrágio da vida

Chesterton
Crusoé é um ser humano numa pequena ilha com uns poucos confortos que acabam de ser arrancados do mar; a melhor coisa no livro é simples­mente a lista dos objetos resgatados do naufrágio. O maior dos poemas é um inventário. Cada utensílio de cozinha torna-se ideal porque Crusoé poderia tê-lo deixado cair no mar.

É um bom exercício, em horas vazias e desagradáveis do dia, olhar para qualquer coisa, [...] e pensar que alguém poderia sentir-se fe­liz por ter tirado aquilo de um navio afundado perto de uma ilha deserta. Mas é um exercício ainda melhor lembrar-se de como todas as coisas passaram por esse salvamento por um triz: tudo foi salvo de um naufrágio. Todos os homens passaram por uma horrível aventura [...]

Mas eu realmente sentia (a fantasia pode parecer boba) como se toda ordem e número de coisas fossem as sobras românticas do navio de Crusoé. O fato de existirem dois sexos e um sol era igual ao fato de existirem duas armas de fogo e um machado. Era extremamente indispensável que nada se perdesse; [...] As árvores e os planetas pareciam coisas salvas de um naufrágio; e quando vi o monte Matterhorn, senti prazer por ele não ter sido esquecido na confusão...

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Quem sou - Parte I

Sou considerado excêntrico, estranho, incomum e esquisito nesse mundo excêntrico, estranho, incomum e esquisito. Seria considerado normal em um mundo regular, pois só os excêntricos podem ser considerados normais em um mundo excêntrico.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Livros e flores

Teus olhos são meus livros.
Que livro há aí melhor,
Em que melhor se leia
A página do amor?

Flores me são teus lábios.
Onde há mais bela flor,
Em que melhor se beba
O bálsamo do amor?

(Machado de Assis)

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

O problema das modernas discussões sociais

Chesterton
O doente pode querer ou não querer quinino[1], mas o que quer certamente é saúde. Ninguém diz: "Estou cansado desta dor de cabeça; quero uma dor de dentes!", ou: "A única coisa para esta gripe russa é uma varicela germânica!" ou ainda “Através desta bronquite, avisto o refulgente paraíso dum reumatismo!”.

Todavia, a dificuldade dos nossos problemas públicos está toda em que certos homens procuram curas que outros homens considerariam como doenças ainda piores e oferecem ideais de saúde que outros se obstinam em classificar de estados patológicos.

Este é o ponto em suspensão, o fato dominante nas modernas discussões sociais: a questão não diz meramente respeito às dificuldades, mas às finalidades. Estamos de acordo quanto ao mal, mas é quanto ao bem que nos agatanhamos. Todos admitimos que uma aristocracia inativa é prejudicial, mas isto não obriga a que todos aceitem como benéfica uma aristocracia ativa. Todos nos sentimos incompatibilizados com um clero irreligioso, mas alguns de nós se enfureceriam enojados só de pensar num clero verdadeiramente religioso. Causa indignação geral a eventual fraqueza do nosso exército, mas há aqueles que se indignariam ainda mais de o ver fortalecido.


[1] Quinino é um alcalóide de gosto amargo que tem funções antitérmicas, antimaláricas e analgésicas.