“Contenham esse avanço... Façam qualquer coisa, por menor que seja... Mantenham aberta ainda que seja uma só porta dentre cem, pois conquanto que tenhamos pelo menos uma porta aberta, não estaremos numa prisão.”
(G.K.C)

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

A história da pré-história

Chesterton
O Homem Eterno

Talvez não se conceda bastante atenção a um caso singular que a ciência dos estudos pré-históricos oferece. Toda a ciência se funda, com efeito, no conjunto admirável de suas conquistas, por um método de acumulação. Todas as invenções mecânicas e a maior parte dos descobrimentos da física deriva da observação completada pela experiência. Ora, bem; não se fabricam homens primitivos. Esta é a grande dificuldade para o conhecimento das nossas origens. Assim, é que chegamos a aperfeiçoar, peça por peça, o aeroplano de nossa invenção, assistindo no jardim, às evoluções de um modelo reduzido feito de bambus e de latas de sardinha; porém, jamais, nesse mesmo jardim, assistiremos a evolução do "elo-perdido". Se cometermos um erro de cálculo, o aeroplano fará, por si mesmo, a prova em sua queda. Porém, se incidirmos num erro de suposição a respeito dos costumes de um dos nossos ancestrais, na selva, por exemplo, não será, de certo, ele quem o demonstrará, deixando-se cair da árvore em que estiver trepado.

É impossível criar o homem de Weanderthal em uma gaiola, como um galo, com o objetivo de descobrir se ele pratica a antropofagia e o rapto nupcial. É absurda a idéia de manter uma manada de homens de Cromagnon, afim de estudar as manifestações do instinto gregário. Se um pássaro se comporta de um modo insólito, é bem possível que adivinhemos os costumes de outros pássaros; mas, de um crânio ou de um fragmento de crânio a imaginação mais científica não pode deduzir todo um vale de Josafat.

Fala-se muito da paciência científica. Da impaciência é que se deveria falar. O mais empírico dos antropologistas está nas mesmíssimas condições que o mais prudente dos arqueólogos: é-lhe preciso ater-se a um farrapo do passado, sem esperança de, jamais, vê-lo aumentar entre suas mãos. Manuseia a porção dos seus descobrimentos com a mesma energia feroz com que o homem das cavernas manuseava o seu pedaço de silex, e por idênticas razões: é o seu único patrimônio, o seu único utensílio e sua única arma; arma que manejará com uma espécie de fanatismo desesperado, ao qual não nos acostumaram, ainda, os sábios do laboratório. Estou seguro de que mais de um professor superaria a mais de um cão na arte de arreganhar os dentes em defesa do seu osso.

Contemplemos a sua obra. Ante a dificuldade de criar um macaco e de vê-lo transformar-se em ser humano, nosso homem não se contentará em dizer o que nós diríamos de bom grado: que uma evolução desse gênero se mostra bastante verossímil. Não, em vez disso, ele exibe a sua pequena lasca ou sua minúscula coleção de ossos e deduz, para maravilhar as multidões, toda uma série de revelações surpreendentes. Assim, por exemplo, em Java encontrou-se os restos de um crânio que era mais estreito do que o nosso, pelo que se pode deduzir; um pouco mais distante se encontrou um fêmur e, dispersos pelas cercanias, alguns dentes que não eram humanos. Se o todo proviesse de um mesmo indivíduo, o que está ainda por se averiguar, a idéia que poderíamos fazer de tal indivíduo não seria, talvez, menos incerta. Entretanto, tudo bastou à ciência popular para fabricar um personagem completo, terminado dos pés à cabeça, sem carência dos mínimos detalhes e que recebeu, sem demora, um nome próprio, como toda personagem histórica que se respeite.

O público falou, assim, de Petecântropo, como se fala de Richelieu, de Fox ou de Napoleão. As enciclopédias ilustradas publicaram sua efígie e nós temos dele um excelente desenho, de tão minucioso realismo, que não se pode duvidar de que lhe foram contados, um por um, até os fios de cabelo. Quem suspeitaria ao ver aquelas expressões fisionômicas, tão poderosamente acentuadas, e aquele olhar abatido, que são o retrato de um fêmur ou de um pedaço de abóboda craniana e de um punhado de dentes? Seu caráter e seus costumes são, igualmente, de notoriedade pública.

[Ora], ignoro tudo o que se refere ao homem pré-histórico, pela simples razão de que é pré-histórico. Por isso que não é logicamente possível existir uma história da pré-história, expressão tão falha de razão, que só os racionalistas podiam inventá-la. Um pregador que qualificasse o dilúvio como antidiluviano surpreenderia, talvez, alguns sorrisos furtivos no rosto de seus ouvintes. Um bispo faria bem não classificando Adão entre os pré-adâmicos. Mas que um historiador nos fale das épocas pré-históricas da História, não nos surpreende na medida que deveria.

O que se quer dizer, sem dúvida, o que se pode dizer é que a humanidade é mais velha do que a História e que a civilização é anterior às crônicas escritas. O homem, de fato, cultivou várias artes antes da escritura, do que não se deve deduzir que, até então, ele fosse um consumado bruto.

Fazem-se, em um tom tão categórico e soberbo, afirmações gratuitas , que é preciso, para examiná-las, uma virtude crítica que ultrapasse o comum.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Diálogo: O mais forte adversário *

- Elimine a causa, e o efeito cessa!

- Mas como marchar contra um adversário que você ama? Como atirar uma lança contra o coração do outro, quando o golpe devasta também o seu próprio coração?!

* Passou-me pela cabeça. O primeiro parágrafo é de Cervantes. O segundo não sei de onde vem.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

O tiro que sai pela culatra

Chesterton
Ortodoxia

Nesse trecho do livro Ortodoxia, Chesterton mostra com clareza que, com a intenção de negar as bases do cristianismo, os céticos acabaram negando as bases de toda coerência e da vida social.

Há homens que destroem a si mesmos e destroem a própria civilização se também puderem destruir essa fantástica história [a história do cristianismo].

Esse é o fato supremo e mais aterrador envolvendo a fé: que seus inimigos usarão qualquer arma contra ela, as espadas que cortam os próprios dedos e as lenhas que queimam as próprias casas. Homens que começam a combater a Igreja em benefício da liberdade e da humanidade terminam jogando fora a liberdade e a humanidade só para poderem com isso combater a Igreja. Não é exagero. Eu poderia encher um livro com exemplos disso.

O sr. Blatchford iniciou, como um demolidor bíblico comum, querendo provar que Adão não teve culpa em seu pecado contra Deus; manobrando para defender essa ideia, ele admitiu, como mera questão secundária, que todos os tiranos, de Nero ao rei Leopoldo, não tiveram culpa em nenhum de seus pecados contra a humanidade.

Conheço um homem que tem tal paixão por provar que ele não terá uma existência pessoal depois da morte que recorre à tese de que ele não tem uma existência pessoal agora. Invoca o budismo e diz que todas as almas desaparecem uma na outra. Para provar que não pode ir para o céu ele prova que não pode ir para a cidade de Hartle-pool.

Conheci pessoas que protestavam contra a educação religiosa com argumentos contra qualquer tipo de educação, dizendo que a mente da criança deve crescer livre ou que os mais velhos não devem ensinar aos jovens.

Conheci pessoas que demonstraram que não poderia existir nenhum julgamento divino mostrando que não pode haver nenhum julgamento humano, nem mesmo em prol de objetivos práticos. Elas queimaram o próprio trigo para atear fogo à Igreja; destruíram as próprias ferramentas para destruí-la; qualquer pedaço de pau era bom para bater nela, mesmo que fosse o último pedaço de sua mobília desmantelada.

Não admiramos, mal desculpamos o fanático que destroça este mundo pelo amor do outro. Mas que devemos dizer do fanático que destroça este mundo por causa do ódio pelo outro? Ele sacrifica a própria existência da humanidade à não-existência de Deus. Oferece suas vítimas não para o altar, mas simplesmente para afirmar a inutilidade do altar e o vazio do trono. Ele está disposto a destruir até mesmo aquela ética primária pela qual todas as coisas vivem, em prol de sua estranha e eterna vingança contra alguém que jamais sequer viveu. E, no entanto, a coisa pende dos céus, incólume. Seus opositores só conseguem destruir tudo aquilo a que eles mesmos com justiça dão valor. Não destroem a ortodoxia; destroem apenas o sentido comum e político de coragem. Não provam que Adão não foi responsável perante Deus; como poderiam fazê-lo? Provam apenas (a partir de suas premissas) que o czar não é responsável perante a Rússia. Não provam que Adão não deveria ter sido punido por Deus; provam apenas que o patrão explorador mais próximo não deveria ser punido pelos homens. Com suas dúvidas orientais sobre a personalidade, não nos dão certeza de que não teremos uma vida pessoal depois da morte; apenas nos dão certeza de que não teremos uma vida muito divertida ou completa aqui.

Não é apenas verdade que a fé é a mãe de todas as energias deste mundo, mas é também verdade que os inimigos dela são os pais de toda a confusão do mundo. Os secularistas não destruíram coisas divinas; destruíram coisas seculares, se isso servir de algum conforto para eles. Os Titãs não escalaram o céu; mas devastaram o mundo.

Fui criado para um outro mundo

C. S Lewis
O Peso de Glória

"Se descubro em mim um dese­jo que nenhuma experiência deste mundo pode satis­fazer, a explicação mais provável é que fui criado para um outro mundo." (CSL)

Quase toda a educação procura silenciar essa voz tímida e persistente dentro de nós: quase todas as filosofias dos nossos tempos foram elaboradas para convencer-nos de que o bem do homem encontra-se nesta terra. Contudo, é curioso como certas filosofias de progresso ou evolução criativa acabem por atestar, relutantemente, que o nosso verdadeiro alvo esteja em outro lugar.

Note a maneira como pretendem convencê-lo de que a terra é seu lar. Começam tentando persuadi-lo de que a terra pode transformar-se em céu, driblando assim a nossa sensação de exílio. Depois dizem que esse feliz acontecimento situa-se num futuro ainda muito distante, driblando assim o nosso conhecimento de que nossa pátria não está presente, aqui e agora. Finalmente, para que o nosso anseio por alguma coisa transtemporal não nos acorde, estragando tudo, valem-se da retórica à disposição, para conservar bem distante da nossa mente o pensamento de que, ainda que a felicidade que nos prometem pudesse ser uma realidade na terra, cada geração, inclusive a última de todas, a perderia na morte, e toda sua história seria nada, deixaria até de ser história, para todo o sempre. Assim, justifica-se todo o absurdo que Shaw põe no discurso final de Lilith, bem como a teoria de Bergman, afirmando que o élan vital é capaz de superar todos os obstáculos, talvez até a morte — como se pudéssemos crer que qualquer desenvolvimento social ou biológico em nosso planeta pudesse protelar a senilidade do sol ou anular a segunda lei da termodinâmica.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

A antiguidade da civilização

Chesterton

Em um lugar escondido da costa jônica que dá frente a Creta e ao Arquipélago, elevava-se uma cidade, que chamaríamos, hoje, povoação fortificada. Chamava-se Ilion; depois, chamou-se Tróia, e seu nome vibra para sempre na memória dos homens. Um poeta que foi, talvez, mendigo e cantor ambulante, sem dúvida iletrado, e que a lenda apresenta como cego, compõe um poema, cujo assunto era a guerra que os gregos fizeram a esta cidade para reconquistar a mais bela mulher do mundo.


Que a mais bela mulher do mundo tenha habitado essa aldeia pode parecer lendário. Que o mais formoso poema do mundo fosse inventado por um homem, que não vira mais que essa aldeia, é um fato histórico. Assegura-se, em verdade, que a obra pertence ao período em que a cultura estava em seu ocaso. Se assim é, eu pergunto: que produziria, então, em seu apogeu?


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