“Contenham esse avanço... Façam qualquer coisa, por menor que seja... Mantenham aberta ainda que seja uma só porta dentre cem, pois conquanto que tenhamos pelo menos uma porta aberta, não estaremos numa prisão.”
(G.K.C)

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Os três tipos de homens

O texto abaixo é uma tradução que fiz de um dos ensaios de Chesterton, chamado "Three Types of Men", contido no livro Alarms and Discursions. Nesse ensaio, Chesterton classifica as pessoas em três tipos: o povo, os poetas e os intelectuais. Aqui, como sempre, ele levantará sua espada em defesa do senso-comum, elogiará os verdadeiros poetas e golpeará a arrogância dos intelectuais.
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Em termos gerais, há três classes de pessoas nesse mundo. A primeira classe é o Povo; possivelmente integra a classe mais ampla e de maior valor. Devemos a essa classe as cadeiras em que nos sentamos, as roupas que vestimos, as casas em que moramos e, de fato (quando chegamos a pensar nisso), provavelmente nós mesmos fazemos parte dessa classe. A segunda classe pode-se denominar, por conveniência, a dos Poetas. Em geral, são um mal para suas famílias, mas um bem para a humanidade. A terceira classe é a dos Professores e Intelectuais, algumas vezes descritos como os pensadores; e estes são uma praga e desolação para suas famílias e também para a humanidade. É claro que nessa classificação, às vezes, há sobreposições, como em qualquer outra classificação. Algumas boas pessoas são quase poetas e alguns maus poetas são quase professores. Porém essa divisão segue a linha de um segmento real da psicologia. Eu não a ofereço às pressas. Tem sido fruto de mais de dezoito minutos de reflexão séria e de investigação.

A classe que se denomina Povo (a que você e eu, com tanto orgulho, nos sentimos ligados), tem uma série de casuais e, no entanto, profundas suposições chamadas “senso-comum”, como a que diz que as crianças são encantadoras, ou que o anoitecer é melancólico e sentimental, ou que um homem lutando contra três é um belo espetáculo. Porém, esses sentimentos não são imperfeitos, nem sequer são simples. O encanto das crianças é muito sutil; é até complexo, ao ponto de ser quase contraditório. Em seu sentido mais simples, é uma mistura de alegria e impotência. O anoitecer desperta um sentimento que até mesmo na canção mais vulgar ou no mais desprezível casal de namorados, pode tornar-se um sentimento agradável. É estranhamente equilibrado entre tristeza e prazer. Também poderíamos descrever como um prazer que proporciona tristeza. O surto de cavalheirismo pelo qual todos nós admiramos o homem que luta contra a injustiça não é muito fácil de se definir separadamente; significa muitas coisas: compaixão, surpresa, drama, desejo de justiça, deleite de experimentar o desconhecido. As idéias do povo são realmente idéias muito sutis, mas ele não as expressa de maneiras sutil. Na verdade, não as expressam de modo algum, exceto naquelas ocasiões (agora muito raras) em que são dadas à insurreição ou ao derramamento de sangue.

Mas isso justifica, em outro sentido, o fato insensato da existência dos poetas. Os poetas são aqueles que partilham esses sentimentos populares, e podem expressá-los de uma maneira que pareçam as coisas estranhas e delicadas que realmente são. Os poetas fazem com que se eleve o humilde requinte da população. Onde o homem comum esconde a emoção mais original, dizendo “Um garotinho singular”, Victor Hugo teria escrito “L'art detre grand-pére” ("A arte de ser avô") [1]. Onde o corretor diz insensivelmente “a noite está chegando”, o senhor Yeats escreveria “Into The Twilight” ("No anoitecer")[2]. Onde o trabalhador comum poderia apenas balbuciar algo sobre ser corajoso e ter objetivos, Homero[3] mostrará um herói esfarrapado desafiando os príncipes em seus próprios banquetes. Os poetas elevam os sentimentos populares a um grau mais penetrante e esplêndido, porém, devemos lembrar sempre que eles são apenas guardiões dos sentimentos populares. Nenhum homem jamais escreveu qualquer boa poesia para mostrar que a infância foi terrível, ou que o anoitecer era brilhante e ridículo, ou que um homem era desprezível, porque havia duelado com outros três. Pessoas que afirmam isso são professores ou tolos.

Os poetas são aqueles que se erguem acima do povo, para compreendê-los. Naturalmente, a maioria dos poetas escreveu em prosa: por exemplo, Rabelais e Dickens. Os pedantes se erguem sobre o povo, recusando compreendê-lo, dizendo que suas obscuras e estranhas preferências são preconceitos e superstições. Os arrogantes fazem com que o povo se sinta estúpido. Os poetas fazem com que o povo se sinta mais sábio do que jamais poderia imaginar. Há muitos elementos estranhos nessa situação. O mais estranho de todos talvez seja o destino dos dois fatores na prática política. Muitas vezes, os poetas que abraçam e admiram o povo são apedrejados e crucificados. Aos tolos que depreciam o povo, geralmente são lhes dado terra e coroa. Por exemplo, a Câmara dos Comuns[4] tem um grande número de pedantes e, em comparação, pouquíssimos poetas.

Por poetas, como já tenho dito, não me refiro, de maneira alguma, aos indivíduos que escrevem poesia ou qualquer outra coisa. Refiro-me aos que, tendo cultura e imaginação, usam-nas para compreender e compartilhar o sentimento de seus companheiros, ao contrário daqueles que os usam para conseguir o que eles chamam de “subir a um plano superior”. Em termos simples, o poeta difere do povo por sua sensibilidade, os professores diferem do povo por sua insensibilidade. Eles não têm sutiliza e sensibilidade suficiente para simpatizar com a população. Seu intento é apenas contradizer o povo, ignorá-lo, conforme seu próprio plano egoísta, para mostrar a si mesmos que o povo está errado, independente do que diga. Esquecem que, na maioria das vezes, a ignorância é a intuição requintada de inocência.

Deixe-me dar um exemplo que dará ênfase à linha do debate. Abra o primeiro Comic Cuts[5] que encontrar e deixe seus olhos correrem adoravelmente sobre a primeira piada que se refere à sogra. Mas a piada, por ser uma piada para a população, será uma piada simples; a idosa senhora será alta e robusta e o marido, dominado pela mulher, será pequeno e covarde. Apesar disso, uma sogra não é uma idéia simples. É uma idéia muito sutil. O problema não é que ela seja grande e arrogante; freqüentemente é pequena e extraordinariamente amável. O problema da sogra é como o anoitecer: é metade uma coisa, metade outra.

Na entanto, a verdade do anoitecer, essa bela e até terna perturbação, nos pode ser transmitido tal como é, somente por um poeta e, neste caso, o poeta deverá ser um romancista muito sincero e penetrante, como George Meredith, ou o Sr. HG Wells[6], cuja "Ann Veronica"[7], acabo de ler com deleite. Eu acredito no que dizem os bons poetas e romancistas, porque eles seguem as pistas que as fadas dão no Comic Cuts. Mas suponha que apareça o professor e diga (como certamente o dirá), “A sogra é como qualquer um de nós. As considerações de gênero não devem perturbar a camaradagem. A questão da idade não deve influenciar no intelecto. A sogra é apenas mais uma das mentalidades. Temos que nos emancipar e nos livrar dessas hierarquias tribais”. Mas quando o professor dissesse isso (como sempre faz), eu lhe diria: “Senhor, você é mais grosseiro que o Comic Cuts. Você é mais vulgar e mais tolo do que um cantor desajeitado fora do ritmo. Você é mais rude e ignorante que a população. Essas pessoas simples alcançaram, pelo menos, uma matiz social e uma verdadeira distinção mental, ainda que só possam expressá-la desajeitadamente. Mas você é tão desajeitado, que não consegue alcançá-la. Se você realmente não consegue perceber que a mãe do noivo e da noiva têm algumas razões para desconfiar, então você não é nem bem educado, nem humano. Você não tem nenhuma sensibilidade pelos afetos profundos e duvidosos da humanidade". Melhor expor as dificuldade como o inculto, do que ser orgulhosamente inconsciente das dificuldades.

A mesma questão pode ser muito bem resumida no velho provérbio “Dois, são uma companhia, três, nenhuma”. Esse provérbio é a verdade exposta da maneira popular, ou seja, é a verdade exposta através de um erro. Certamente não é verdade que três não seja uma companhia. Três é uma excelente companhia. Três é o número ideal para uma perfeita camaradagem, como acontece nos "Três Mosqueteiros"[8]. Mas se você rejeita o provérbio inteiro e diz que dois ou três não faz diferença na camaradagem, se não consegue ver que três é um abismo maior entre dois e três do que entre três e três milhões, então sinto ter que lhe dizer que você pertence a terceira classe de seres humanos; que não terá amigos, nem dois nem três, e permanecerá sozinho gritando no deserto até a morte.

Notas do tradutor:


[1] Coleção de poemas deVictor Hugo, publicado em 1877. Neles, o poeta faz alusão à inocência e ao comportamento terno de seus netos.
[2] W.B. Yeats, poeta e dramaturgo irlandês.
[3] Poeta épico da Grécia Antiga, ao qual tradicionalmente se atribui a autoria dos poemas épicos Ilíada e Odisseia.
[4] Referência ao parlamento britânico, grossamente, equivalente à Câmara dos Deputados no Brasil.
[5] Primeira revista em quadrinhos, criada em 1890. Seu conteúdo era satírico-humorístico
[6] Ambos poetas e escritores ingleses.
[7] Romance de H.G.Wells, lançado em 1909.
[8] Romance de Alexandre Dumas, lançado em 1844.

domingo, 11 de abril de 2010

Vontade e Desejo

Desde muito tempo a diferença entre vontade e desejo desapareceu. A filosofia clássica tinha bem distinto esses conceitos e a distinção entre eles é bastante elucidativa.

Vontade é o apetite racional ou compatível com a razão. Desejo é o apetite sensível, não-racional e, muitas vezes, segundo Cícero, a concupiscência ou a cupidez desenfreada. A vontade, como apetite racional, está submetida aos preceitos da razão, à lógica. Assim é que Kant define a vontade como a faculdade de agir segundo a representação de regras.

Deve-se principalmente ao ceticismo o desapareceimento da diferença entre esses dois conceitos, pois tendo colocado várias barreiras à possibilidade do conhecimento[1] e à origem do conhecimento[2] , a caracterização da vontade como ato racional foi posta em dúvida.

No entanto, a psicologia moderna veio ratificar o pensamento clássico. Murphy, em sua Introdução à Psicologia, diz que "a vontade é o nome com o qual se designa um complexo processo interior que influencia nosso comportamento de tal modo que nos torna presas menos fácil da pura força bruta dos impulsos[3]".

Socrates disse que a causa do mal é a ignorância. Desta forma, a causa de um mal é uma ação não pensada ou pensada insuficientemente. Assim, Platão dá um exemplo muito ilustrativo da diferença entre querer racionalmente (vontade) e querer sem pensar ou pensando insuficientemente (desejo): "...tiranos não fazem o que querem (vontade, racional), embora façam o que lhes agrada ou bem lhes parece (desejo), visto que fazer o que se quer (vontade, racional), significa fazer o que se mostra bom ou útil, isto é, agir racionalmente".

"Penso, logo existo", disse Descartes, afirmando ser o "pensar" a certeza imediata da nossa existência. Não sei se Maine de Biran, quando disse "Quero, logo existo", preocupou-se na diferença entre vontade e desejo[4]. Caso sim, e o seu "Quero" signifique desejo, então, para ele, nosso apetite sensível é a certeza imediata da nossa existência; porém se esse "Quero", significa vontade, ele falha e deve descer um degrau e ficar com Descartes, já que "querer" como vontade é racional, então antes de querer pensa-se, logo, pensar vem antes, como afirmou Descartes.

Bem, quero almoçar! E esse "querer" é uma mistura de vontade e desejo. Estou com fome (desejo) e, porque vou praticar um exercício físico, quero me alimentar (vontade).


[1] Podemos apreender a ralidade?
[2] A realidade, se é apreendida, se dá por meio da razão, da experiência ou de ambos?
[3] Isto é, do Desejo.
[4] Na verdade, Biran estava tratando da realidade como resistência às nossas ações. O que é real opõe-se a mim; com o imaginário ,faço o que eu quiser.

sábado, 3 de abril de 2010

Amor livre?

Chesterton

Inventaram uma expressão; uma expressão que é como mistura de água e óleo em duas palavras: “amor livre”, como se um amante alguma vez já tivesse sido ou pudesse algum dia vir a sê-lo. É da natureza do amor prender a si próprio... Os sábios modernos oferecem ao amante, com uma risada falsa e amarga, as maiores liberdades e a mais completa irresponsabilidade... Dão-lhe todas as liberdades exceto a liberdade de vender a sua liberdade, que é a única que o amante deseja.

Temos um retrato vivo desse estado de coisas na brilhante peça de Bernard Shaw The Philanderer (“O galanteador”). Charteris é um homem sempre esforçando-se por ser um amante livre, que é o mesmo que esforçar-se por ser um solteiro casado ou um negro branco. Perambula numa busca faminta por certo tipo de excitação que só poderá obter quando tiver a coragem de parar de perambular.