Em palavras que ainda podem provocar lágrimas, Agostinho descreve a desolação em que a morte de seu amigo Nebridius o mergulhou (Confissões IV, 10). E extrai então uma moral. Isto é o que acontece, diz ele, quando entregamos nosso coração a qualquer coisa além de Deus. Todos os seres humanos morrem. Não permita que sua felicidade dependa de algo que pode perder. Caso o amor deva ser uma bênção e não uma maldição, deve dirigir-se ao único Amado que jamais partirá.
Isto na verdade é de um bom senso notável. Não coloque os seus bens num recipiente rachado. Não gaste demasiado numa casa da qual tenha de sair. E não existe ninguém que reaja mais naturalmente do que eu a tais máximas. Sou uma criatura que põe a segurança em primeiro lugar. De todos os argumentos contra o amor nenhum faz um apelo mais forte à minha natureza do que "Cuidado! Isto pode fazer com que sofra".
A minha natureza, ao meu temperamento, mas não à minha consciência. Quando respondo a esse apelo pareço, a mim mesmo, estar a milhares de quilômetros de Cristo. Se existe alguma coisa de que estou certo é o fato de Seus ensinamentos não terem tido por um instante sequer o propósito de confirmar minhas preferências congênitas por investimentos seguros e responsabilidades limitadas. Duvido que haja em mim algo que o desagrade tanto quanto isso. E quem poderia começar a amar a Deus numa base tão prudente - porque a segurança (por assim dizer) é melhor? Quem poderia sequer incluí-Ia entre as razões para amar? Você escolheria uma esposa ou um amigo, ou até mesmo um cão, nesse estado de espirito? E preciso estar completamente fora do mundo do amor, de todos os amores, quando se fazem cálculos desses.
Eros, o fora da lei, preferindo o Amado à felicidade, se assemelha ao próprio Amor muito mais do que isto.
Julgo que esta passagem das Confissões é mais um remanescente das sofisticadas filosofias pagãs que o cercavam do que parte de seu cristianismo. Ela está mais próxima da "apatia" estóica ou do misticismo neoplatônico do que da caridade.
De minha parte, prefiro seguir Aquele que chorou sobre Jerusalém e sobre o túmulo de Lázaro e, amando a todos, tinha porém um discípulo a quem ele "amava" num sentido especial. Paulo tem para nós maior autoridade que Agostinho - o apóstolo Paulo que mostra todos os sinais de que teria sofrido como homem e cujos sentimentos com certeza não seriam refreados no caso de Epafrodito ter morrido (Filipenses 2:27). Mesmo sendo admitido que o fato de nos protegermos das desilusões fosse uma atitude sábia, o próprio Deus oferece tal segurança? Parece que não. Cristo diz no final: "Por que me abandonaste?"
Não existe alívio na sugestão de Agostinho. Nem em qualquer outra linha de pensamento. Não existe um investimento seguro. Amar é ser vulnerável. Ame qualquer coisa e seu coração irá certamente ser espremido e possivelmente partido. Se quiser ter a certeza de mantê-lo intacto, não deve dá-lo a ninguém, nem mesmo a um animal. Envolva-o cuidadosamente em passatempos e pequenos confortos, evite todos os envolvimentos, feche-o com segurança no esquife ou no caixão do seu egoísmo. Mas nesse esquife - seguro, sombrio, imóvel, sufocante - ele irá mudar. Não será quebrado, mas vai tornar-se inquebrável, impenetrável, irredimível.
A alternativa para a tragédia, ou pelo menos para o risco da tragédia é a danação. O único lugar fora do céu onde você pode manter-se perfeitamente seguro contra todos os perigos e perturbações do amor é o inferno.
Acredito que os amores mais fora-da-lei e imoderados são menos contrários à vontade de Deus do que uma falta de amor auto-provocada e auto-protetora. E como ocultar o talento (a moeda) num lenço e por essa mesma razão. "Eu sabia que o senhor era um homem cruel". Cristo não ensinou e sofreu a fim de nos tornarmos, mesmo em nossos amores naturais, mais cuidadosos com nossa própria felicidade. Se o homem não faz cálculos com relação aos entes queridos terrenos a quem vê, irá provavelmente agir da mesma forma para com Deus a quem não vê. Iremos aproximar-nos mais de Deus aceitando os sofrimentos inerentes a todos os amores e oferecendo-os a Ele, em lugar de fazer tudo para evitá-los. É preciso despojar-nos de toda a nossa armadura defensiva. Se nossos corações tiverem de partir-se, e se Ele escolher este como sendo o meio de parti-los, assim seja."
Extraído do livro Os quatro amores (C.S. Lewis)