“Contenham esse avanço... Façam qualquer coisa, por menor que seja... Mantenham aberta ainda que seja uma só porta dentre cem, pois conquanto que tenhamos pelo menos uma porta aberta, não estaremos numa prisão.”
(G.K.C)

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Chesterton é inconfundível

Agnon Fabiano

Estava lendo um trecho de um dos livros de Chesterton que o próprio título já é um paradoxo, chama-se "Enormes Minúncias" (livro em espanhol). E logo no primeiro parágrafo, um paradoxo após outro:

"Não direi que esta história é verdadeira - porque, como se irá comprovar, toda ela é verdade e nada tem de história. Não tem nem explicação, nem conclusão; é, à semelhança das maioria das coisas que encontramos ao longo da vida, um fragmento daquilo que seria intensamente excitante, se não fosse demasiado grande para ser visto. É que a perplexidade da vida resulta de nela existirem demasiadas coisas interessantes para que nos possamos interessar apropriadamente por qualquer uma delas."

Além de todo aprendizado, além de todo bom-senso (como disse C. S. Lewis, Chesterton é o mais sensato de todos!), além de toda beleza literária e das idéias, divirto-me ao ler Chesterton. O Príncipe dos Paradoxos literalmente me ensina e me diverte com suas "tiradas" geniais, com seus pensamentos e com seus insights. Os trocadilhos paradoxais são estonteantes. Seu estilo é inconfundível.


Insights chestertonianos

Chesterton

A Ilíada só é grande porque nela toda a vida é uma batalha; a Odisséia só é grande porque nela toda a vida é uma jornada.

[Os modernos] pensam que o objetivo de abrir as mentes é simplesmente abri-las, enquanto eu estou absolutamente convencido de que o objetivo de abrir a mente, como o de abrir a boca, é fechá-la de novo com algo sólido. (The Flyinng Inn, 1914)

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Novo site Chesterton Brasil



É com muita satisfação que noticio um novo projeto: trata-se do site www.chestertonbrasil.org, já disponível à todos aqueles que têm o desejo de conhecer cada vez mais esse grande homem. É indiscutível o valor de Chesterton para o Brasil, um país dominado por muitos problemas de cunho filosófico. A leitura de Chesterton é um remédio pra alma, revigora o intelecto e apraz a inquetação por saber que todos nós temos. Façam bom proveito!


"Criamos este site com o objetivo de reunir e difundir o pensamento de Gilbert Keith Chesterton (1874-1936) no Brasil. Chesterton é um dos maiores pensadores católicos do século XX e, infelizmente, por diversos motivos, desconhecido em nossa Terra de Santa Cruz. Diante disso, e da inexistência de uma sociedade Chestertoniana no Brasil, resolvemos lançar a idéia de no futuro próximo termos uma Sociedade Chestertoniana Brasileira, como as Inglesas, Americanas, Argentina e Italiana.

Enquanto isso, desejamos lhe oferecer o que há de melhor sobre Chesterton prioritariamente em língua portuguesa. Reunimos neste site artigos, traduções, vídeos, áudios, frases e trechos de suas obras, imagens etc. com o intuito de possibilitar um contato com a vida e pensamento desse gênio".

Fonte: www.chestertonbrasil.org

domingo, 12 de dezembro de 2010

Sobre Chesterton

Jorge Luis Borges
"Outras Inquisições"


Because He does not take away The terror from the tree...

CHESTERTON: A Second Childhood.

Edgar Allan Poe escreveu contos de puro horror fantástico ou de pura bizarrerie; Edgar Allan Poe foi o inventor do conto policial. Isso não é menos certo que o fato de ele não ter combinado os dois gêneros. Não impôs ao cavalheiro Augusto Dupin a tarefa de precisar o antigo crime do Homem das Multidões ou de explicar a aparição que fulminou o mascarado príncipe Próspero na câmara negra e escarlate. Chesterton, ao contrário, prodigalizou com paixão e felicidade esses tours de force. Cada um dos textos da Saga do padre Brown apresenta um mistério, propõe explicações de tipo demoníaco ou mágico para, no fim, substituí-las por outras que são deste mundo. A mestria não esgota a virtude dessas breves ficções; nelas creio notar uma cifra da história de Chesterton, um símbolo ou espelho de Chesterton. A repetição de seu esquema ao longo dos anos e dos livros (The Man Who Knew Too Much, The Poet and the Lunatics, The Paradoxes of Mr. Pond) parece confirmar que se trata de uma forma essencial, não de artifício retórico. Estes apontamentos são uma tentativa de interpretar essa forma.

Antes, convém reconsiderar alguns fatos de excessiva notoriedade.

Chesterton foi católico, Chesterton acreditou na Idade Média dos pré-rafaelistas ("Of London, small and white, and clean”), Chesterton pensou, como Whitman, que o mero fato de ser é tão prodigioso que nenhuma desventura deve eximir-nos de uma espécie de cômica gratidão. Tais crenças podem ser justas, mas o interesse que despertam é limitado; supor que elas esgotam Chesterton é esquecer que um credo é o último termo de uma série de processos mentais e emocionais e que o homem é toda a série. Neste país, os católicos exaltam Chesterton, os livre-pensadores o negam. Como todo escritorque professa um credo, Chesterton é julgado por causa disso, é reprovado ou aclamado por isso. Seu caso é semelhante ao de Kipling, que as pessoas sempre julgam em função do Império Britânico.

Poe e Baudelaire, assim como o Urizen atormentado de Blake, propuseram-se criar um mundo de espanto; é natural que sua obra seja fértil em formas do terror. Creio que Chesterton não teria tolerado a imputação de ser um urdidor de pesadelos, um monstrorum artifex (Plínio, XXVIII, 2), mas ele indefectivelmente incorre em freqüentes imagens atrozes. Pergunta se porventura um homem tem três olhos, ou um pássaro três asas; fala, contra os panteístas, de um morto que descobre no Paraíso que os espíritos dos coros angelicais têm sempre seu próprio rosto[1]; fala de uma prisão de espelhos; fala de um labirinto sem centro; fala de um homem devorado por autômatos de metal; fala de uma árvore que devora os pássaros e que, em vez de folhas, dá penas; imagina (The Man Who Was Thursday, VI) que nos confins orientais do mundo talvez exista uma árvore que já é mais, e menos, que uma árvore, e, nos ocidentais, algo, uma torre, cuja arquitetura, por si só, é malvada. Define o próximo pelo distante, e até pelo atroz; se fala dos próprios olhos, nomeia-os com palavras de Ezequiel (1, 22), "um terrível cristal"; se da noite, aperfeiçoa um antigo horror (Apocalipse 4, 6) para chamá-la "um monstro feito de olhos". Não menos ilustrativa é a narração How I Found the Superman. Chesterton fala com os pais do Super-Homem; perguntados sobre a beleza do filho, que não sai de um quarto escuro, estes lembram-lhe que o Super-Homem cria seu próprio cânone e por ele deve ser medido ("Nesse plano, ele é mais belo que Apolo. Visto de nosso plano inferior, claro que..."); depois admitem que não é nada fácil estreitar sua mão ("O senhor sabe; a estrutura é muito outra"); depois são incapazes de precisar se ele tem cabelo ou penas. Morre vítima de uma corrente de ar, e alguns homens retiram um ataúde que não tem forma humana. Chesterton relata essa fantasia teratológica em tom de zombaria. Tais exemplos, que seria fácil multiplicar, provam que Chesterton se defendeu de ser Edgar Allan Poe ou Franz Kafka, mas que algo no barro de seu eu propendia ao pesadelo, algo secreto, cego e central. Não por acaso ele dedicou suas primeiras obras à defesa de dois grandes artífices góticos: Browning e Dickens; não por acaso repetiu que o melhor livro saído da Alemanha era o dos contos de Grimm. Denegriu Ibsen e defendeu (talvez indefensavelmente) Rostand, mas os Trolls e o Fundidor de Peer Gynt eram da mesma matéria de seus sonhos, "the stuff his dreams were made of". Esse desacordo, essa precária sujeição de uma vontade demoníaca definem a natureza de Chesterton. Emblemas dessa guerra são, para mim, as aventuras do padre Brown, cada uma das quais pretende explicar, mediante a pura razão, um fato inexplicável. Por isso afirmei, no parágrafo inicial desta nota, que as ficções de Chesterton eram cifras de sua história, símbolos e espelhos de Chesterton. Isso é tudo, com a ressalva de que a "razão" à qual Chesterton subordinou suas imaginações não era exatamente a razão, mas a fé católica, ou seja, um conjunto de imaginações hebréias subordinadas a Platão e a Aristóteles.

Recordo duas parábolas opostas. A primeira consta no primeiro volume das obras de Kafka. E a história do homem que pede para ter acesso à lei. O guardião da primeira porta responde que dentro há muitas outras e que não há sala que não esteja custodiada por um guardião, cada qual mais forte que o anterior. O homem senta-se para esperar. Passam-se os dias e os anos, até que ele morre. Em sua agonia, pergunta: "Será possível que nos anos desta minha espera ninguém além de mim tenha querido entrar?". O guardião responde: "Ninguém quis entrar porque só a ti se destinava esta porta. Agora vou fechá-la". (Kafka comenta essa parábola, complicando-a ainda mais, no nono capítulo de O Processo.) A outra parábola consta no Pilgrim’s Progress, de Bunyan. As pessoas olham com cobiça um castelo defendido por muitos guerreiros; junto à porta há um guardião com um livro para registrar o nome de quem for digno de entrar. Um homem intrépido achega-se ao guardião e diz: "Anote meu nome, senhor". Depois tira sua espada e arremete contra os guerreiros e recebe e devolve feridas sangrentas, até abrir passagem em meio ao fragor e entrar no castelo.

Chesterton dedicou a vida a escrever a segunda parábola, mas algo nele sempre tendeu a escrever a primeira.



[1] Amplificando um pensamento de Attar ("Em toda a parte só vemos Teu rosto"), Djalal al-Din Rumi compôs alguns versos, depois traduzidos por Rückert (Werke, IV, 222), em que se diz que nos céus, no mar e nos sonhos há Um Só e em que se louva esse único por ter reduzido à unidade os quatro briosos animais que puxam a carruagem dos mundos: a terra, o fogo, o ar e a água.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

A troca de valores

Chesterton
Tremendas Trivialidades[1]

De todos os sinais de modernidade que se parecem traduzir em algum tipo de decadência, nenhum é mais ameaçador e perigoso do que a exaltação de normas de conduta pequenas e secundárias, à custa das grandes e primárias, à custa dos laços eternos e da trágica moralidade humana.

Desse modo, costuma considerar-se mais injurioso acusar um homem de mau gosto do que de má ética. Hoje em dia, já não se associa a limpeza à santidade, visto que a limpeza se converteu em algo essencial, ao passo que a santidade se converteu em algo ofensivo.

(...) O grande perigo para a nossa sociedade está em que todo o seu mecanismo se possa tornar cada vez mais fixo, à medida que o espírito se torna mais inconstante.

Os pequenos atos de um homem deveriam ser livres, flexíveis, criativos; o que deveria permanecer inalterado são os seus princípios, os seus ideais. Mas conosco o contrário é que é a verdade: os nossos pontos de vista alteram-se constantemente, mas o nosso almoço permanece inalterado.

[1] Lançamento em Portugal pela editora Alêtheia. Há também uma antiga edição em espanhol sob o título "Enormes Minúncias".

sábado, 20 de novembro de 2010

A violência da razão

Chesterton, Doze tipos.

A razão é sempre uma espécie de força bruta; aqueles que recorrem à cabeça ao invés do coração, ainda que pálidos e polidos, são necessariamente homens de violência. Falamos em "tocar" o coração de um homem, mas nada podemos fazer à sua cabeça senão golpeá-la.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

E fácil ser louco; é fácil ser herege

Chesterton

E fácil ser louco; é fácil ser herege. É sempre fácil deixar que cada época tenha a sua cabeça; o difícil é não perder a própria cabeça. É sempre fácil ser um modernista; assim como é fácil ser um snob. Cair em qualquer uma das ciladas explícitas de erro e exagero que um modismo depois de outro e uma seita depois de outra espalharam ao longo da trilha histórica do cristianismo — isso teria sido de fato simples.

É sempre simples cair; há um número infinito de ângulos para levar alguém à queda, e apenas um para mantê-lo de pé. Cair em qualquer um dos modismos, do agnosticismo à Ciência Cristã, teria de fato sido óbvio e sem graça. Mas evitá-los a todos tem sido uma estonteante aventura; e na minha visão a carruagem celestial voa esfuziante atravessando as épocas. Enquanto as monótonas heresias estão esparramadas e prostradas, a furiosa verdade cambaleia, mas segue de pé.

Ortodoxia

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

A verdadeira Educação

Chesterton

As pessoas que mais falam em “mudança” e “progresso” são as que menos conseguem imaginar, realmente, qualquer alteração nos atuais testes e métodos de vida. Por exemplo, elas fazem do “ler e escrever” um teste para todas as idades e todas as civilizações. Ler e escrever são em si meras realizações, realizações deliciosas e empolgantes, como tocar o bandolim ou andar de montanha russa. Algumas realizações estão na moda num momento, outras noutro. Em nossa civilização, quase todos podem ler. Na civilização sarracena, quase todos podiam cavalgar. Mas as pessoas aplicam os três “R’s”[1] a toda a história humana. Elas dizem, num tom de voz de quem está chocado: “Você sabia que na Idade Média não se conseguia encontrar um cavalheiro em dez que soubesse assinar o próprio nome?” Isto é análogo a um cavalheiro medieval ter dito horrorizado: “Você sabia que no reino de Eduardo VII, sequer um em dez cavalheiros sabia como usar um falcão mensageiro?” Ou, falando mais precisamente, seria como se um cavalheiro medieval expressasse perplexidade porque um moderno cavalheiro não consegue adornar seu brasão de armas. O alfabeto é um conjunto de símbolos arbitrários. No século XIV, todo cavalheiro conhecia um; no século XX, todo cavalheiro conhece outro. O primeiro cavalheiro é precisamente tão ignorante por não saber que “gato” se soletra g-a-t-o, quanto é o segundo cavalheiro por não saber que a Cruz de Santo André é chamada de santor, ou que verde e escarlate não combinam em heráldica.

Falamos, com típico fanatismo e estreiteza, do Alfabeto. Mas há, na verdade, um grande número de alfabetos, além do alfabeto de letras. O alfabeto de letras era pouco usado na Idade Média: esses outros alfabetos são pouco usados agora. Certo número de soldados aprendem a transmitir suas mensagens acenando abruptamente pequenas bandeiras. Outros conversam entre si de um modo íntimo e loquaz por meio de reflexos da luz do sol em espelhos. Esses alfabetos são agora realizações tão peculiares e restritas quanto a escrita era na Idade das Trevas. Eles podem se tornar algum dia um hábito tão difundido e universal quanto a escrita é agora. Em alguma era futura poderemos ver uma dama e um cavalheiro, um de cada lado da mesa, discutindo de forma animada acenando bandeirinhas um para o outro. Poderemos ver distintas senhoras nas janelas de seus aposentos, com seus espelhos de maquiagem voltados para a rua, agitando-os violentamente a fim de se comunicarem como uma amiga a alguns quilômetros de distância. Isto será especialmente satisfatório, pois lhes proporcionará um uso para seus espelhos, artigos que elas, no presente, consideram inteiramente sem raison d’être.

Quão estranho é, então, que tão constantemente pensemos que a educação tenha algo a ver com tais coisas como ler e escrever! Ora!, educação real consiste em não ter nada a ver com coisas como ler e escrever. Ela consiste, no mínino, em ser independente delas. A educação real consiste no fato de que vemos além de símbolos e de meros mecanismos da época em que nos encontramos: a educação consiste precisamente na percepção de uma simplicidade permanente que sobrevive por trás de todas as civilizações; a vida que é mais que alimento; o corpo que é mais que vestuário. O único objetivo da educação é fazer-nos ignorar os meros esquemas de educação. Sem educação estamos num perigo horrível e mortal de levar a sério as pessoas instruídas. A última das modas da cultura, o último dos sofismas do anarquismo nos arrebatarão se não formos educados: não saberemos quão antigas são as novas idéias. Pensaremos que a Ciência Cristã[2] é realmente todo o cristianismo e toda a ciência. Pensaremos que as cores artísticas são apenas as cores da arte. O homem deseducado sempre se importará excessivamente com complicações, com novidades, com a moda, com a coisa mais recente. O homem deseducado será sempre um dândi intelectual. Mas o negócio da educação é nos contar a respeito de todas as diversas complicações, de toda a estonteante beleza do passado. A educação impõe-nos conhecer, como disse Arnold[3], todas as melhores literaturas, todas as mais belas artes, todas as melhores filosofias nacionais. A educação nos impõe conhecê-las todas para que possamos passar sem todas elas.

[1] Os três erres se referem às palavras, em inglês, relativas às supostas três habilidades básicas de uma educação orientada: reading [leitura],writing [escrita], arithmetic [aritmética]. As palavras, embora não comecem todas com “r”, têm um fonema forte que envolve esta letra.

[2] Religião fundada em 1866 por Mary Baker Eddy. Seus adeptos acreditam que o homem e o universo são coisas espirituais em si e que o mal e o erro são produtos da existência material.

[3] Matthew Arnold foi escritor e crítico cultural inglês. Foi um dos mais influentes escritores ingleses do século XIX.

Excerto do Blog do Angueth

terça-feira, 26 de outubro de 2010

A história pela metade

Chesterton

A inovação moderna que substituiu a história pelo jornalismo, ou por aquela tradição que podemos chamar de "fofoca" da história, teve pelo menos um efeito claro: garantiu que as pessoas ouçam apenas o fim das histórias.

Esse tipo de jornalista ou "historiador" nunca pensam em publicar a vida até o momento de publicar a morte. Assim como lida com os indivíduos, lidam também com as instituições e as idéias. Após a Primeira Guerra Mundial, nosso público começou a ouvir falar da emancipação de todo tipo de nação. No entanto, nunca ouvira dizer que essas nações estivessem escravizadas. Fomos chamados a avaliar se era justo que essas nações se estabelecessem quando nunca nos permitiram saber que existiam desavenças.

É muito interessante. É mais ou menos igual ao último ato de uma peça para aqueles que acabaram de entrar no teatro bem na hora de a cortina cair. Mas não permite saber exatamente do que trata a história toda. Essa maneira leviana de promover o teatro, pode ser recomendável para os que se contentam com um tiro de pistola ou um abraço apaixonado. É insatisfatório, porém, para os atormentados por uma curiosidade meramente intelectual sobre quem está beijando ou matando quem, e por quê.

Boa parte da história moderna padece dessa mesma imperfeição. Na melhor das hipóteses, os historiadores contam apenas metade da história e tratam a segunda metade sem falar da primeira. Homens para quem a razão tem início com o Renascimento, homens para quem a religião nasce com a Reforma, nunca podem fornecer um relato completo de coisa alguma, pois têm de partir de instituições cuja origem não podem explicar ou, de modo geral, nem ao menos imaginam. Na versão apresentada por esses autores, a história simplesmente não começa. Eles só chegam no momento da morte, quando não depois que ela já ocorreu. Esses autores apenas juntam, por assim dizer, as próprias cinzas das cinzas, o último resto dos restos.

Tomamos conhecimento de reformadores sem saber o que tinham a reformar; somos colocados diante de rebeldes sem ter noção do objeto de sua revolta; lemos memoriais que não tem relação com memória alguma; e somos informados de restaurações de coisas que aparentemente nunca existiram antes de serem restauradas.

Ora, imagino que todos saibam que os séculos XII e XIII foram "um momento de um despertar do mundo. Nesse período ocorreu um novo florescimento da cultura e das artes criativas que se sucedeu a um longo período de experiência bem mais desagradável e até estéril, que chamamos de Idade das Trevas". Esses séculos podem ser considerados uma emancipação; foram, com certeza, um fim, um fim do que talvez pareça um período mais difícil e mais desumano. Mas, o que chegou ao fim? De que os homens foram emancipados? É em relação a isso que há um verdadeiro conflito e desavença entre as diferentes filosofias da história.

Sob o aspecto meramente externo e secular, tem sido afirmado com exatidão que os homens despertaram de um sono, mas houve, durante esse sono, sonhos reveladores e, às vezes, de uma espécie monstruosa. Na rotina racionalista em que caiu os historiadores modernos, considera-se suficiente dizer que os homens foram emancipados da mera superstição selvagem, tendo avançado em direção da iluminação civilizada. Ora, esse é um grande erro que fica como pedra de tropeço bem no começo de nossa história.

O fim da Idade Média não foi só o fim de um sono. E certamente não foi apenas o final de uma escravidão supersticiosa. Foi o fim de algo que faz parte de uma ordem bem definida, porém, bem diferente, de idéias.

sábado, 9 de outubro de 2010

A decadência da cultura brasileira

Olavo de Carvalho

Na década de 50, tínhamos, vivos e atuantes, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Àlvaro Lins, Augusto Meyer, Otto Maria Carpeaux, Mário Ferreira dos Santos, Vicente Ferreira da Silva, Herberto Sales, Cornélio Penna, Gustavo Corção, Nelson Rodrigues, Lúcio Cardoso, Heitor Villa-Lobos, Augusto Frederico Schmidt, a lista não acaba mais. Hoje, quem representa na mídia a imagem da “cultura brasileira”? Paulo Coelho, Luís Fernando Veríssimo, Gilberto Gil, Arnaldo Jabor, Emir Sader, Frei Betto e Leonardo Boff. Perto desses, Chomsky é Aristóteles. É o grau mais alto pelo qual se medem. Chamar isso de crise, ou mesmo de decadência, é de um otimismo delirante. A cultura brasileira tornou-se a caricatura de uma palhaçada. É uma coisa oca, besta, disforme, doente, incalculavemente irrisória.

A inteligência, ao contrário do dinheiro ou da saúde, tem esta peculiaridade: quanto mais você a perde, menos dá pela falta dela. O homem inteligente, afeito a estudos pesados, logo acha que emburreceu quando, cansado, nervoso ou mal dormido, sente dificuldade em compreender algo. Aquele que nunca entendeu grande coisa se acha perfeitamente normal quando entende menos ainda, pois esqueceu o pouco que entendia e já não tem como comparar.

Mário Ferreira dos Santos


Olavo de Carvalho

Quando tudo o que hoje se escreve no Brasil tiver se desfeito em farrapos, quando até mesmo os melhores tiverem se tornado apenas verbetes de uma enciclopédia jamais consultada, as palavras de um pensador brasileiro ainda estarão vivas para mostrar, sobre as ruínas dos tempos, a perenidade do espírito humano.

Ninguém neste país ergueu mais alto o estandarte da inteligência nem levou o pensamento de língua portuguesa mais perto de uma universalidade supratemporal do que o filósofo paulista Mário Ferreira dos Santos (1903-1968).

Cultuado e respeitado, temido e odiado em vida, Mário tornou-se, uma vez morto, objeto de uma conspiração de silêncios destinada a abafar o mais paradoxal dos escândalos: este país sem cultura filosófica deu ao mundo um dos maiores filósofos do século, talvez de muitos séculos.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Sempre duelando


Chesterton: "Bernard, quem o vir pensará que estamos passando fome na Inglaterra".

Bernard Shaw: "Gilbert, quem o vir pensará que és a causa dessa fome".



(Foto: Shaw à esquerda e Chesterton à direita. No meio, Hilare Belloc.)

terça-feira, 24 de agosto de 2010

O Tempero da vida e outros ensaios


Para a imensa satisfação de muitos, mais um livro de Chesterton nos chega em língua portuguesa: O Tempero da vida e outros ensaios.

"O obra reúne os pensamentos do criador do Padre Brown sobre o avanço da mentalidade burguesa e tecnológica entre as duas guerras, artigos sobre humor, sobre a literatura sentimental e sobre a composição de histórias de detetive, além de textos sobre as obras de Shakespeare, Esopo, Hans Christian Andersen, Lewis Carroll, Charles Dickens e Charlotte Brontë. Em todos eles, um senso de humor perpassa as reflexões sobre arte, filosofia e religião".

Trecho: "Se é para se condenar a literatura sentimental, definitivamente não o deverá ser porque é sentimental, e sim porque não é literatura. O drama ou a epopeia podem ser consideradas a vida ativa da literatura; o soneto ou a ode, a vida contemplativa. O ensaio é a brincadeira. O ócio é um alimento, como o sono; a liberdade é um alimento, como o sono. O humor corresponde à virtude humana da humildade e é apenas mais divino porque tem, por um instante, uma percepção maior dos mistérios".

Comprem!

Livraria Cultura

Livraria Saraiva

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

O inventor

Gustavo Corção

Convém, antes de prosseguir, esclarecer a distinção entre o inventor e o descobridor.

O inventor pertence ao campo do fazer e define-se pelo ato de imprimir uma forma nova à matéria já conhecida; o descobridor pertence ao campo do conhecer e consiste em descobrir e formular novas propriedades e relações já existentes no objeto, mas escondidos à inteligência. A emissão eletrônica constituiu uma descoberta; a válvula eletrônica, foi uma invenção. As leis do pêndulo — esse antiqüíssimo objeto — foram descobertas; o relógio baseado no isocronismo pendular foi inventado.

O técnico distingue-se do cientista por ser um indivíduo em que o fazer prevalece sobre o conhecer...

O técnico, como seu irmão o poeta, é mais inovador do que o cientista e o descobridor. Quem descobre um satélite de Júpiter ou uma nova propriedade do oxigênio está apenas pronunciando pela primeira vez, com verbo humano, o que já estava escondido no céu ou na terra; quem faz um saca-rolhas ou um poema, está fazendo um objeto que antes dele não existia.

O homem de imaginação inventiva é o explorador dos possíveis.

Assim, tateando as essências, conduzindo-as e sentindo-lhes as resistências, vai o inventor experimentando aproximações até que descubra, num desses choques, uma fecundação. Aí se imobiliza, crispado, atento, como um felino e demora-se o quanto pode no deslumbramento da presa apetecida. Nesse momento acode-lhe ao espírito uma impressão extremamente ingênua: ele vê o objeto, numa antecipação, como se já estivesse pronto. Não no detalhe, problema por problema, mas inteiro embora indeciso como desenho de criança. Ele vê a forma da coisa que pela primeira vez na história do mundo se desenha em sua inteligência, oscilante, líquida, como se estivesse surgindo no fundo de um lago.

Desse momento em diante, já com o sabor das primícias, ele volta atrás, aos detalhes, aos problemas, tendo porém o passo mais firme porque já viu pronto, num sonho, o objeto de seus sonhos. Se foi uma miragem apenas ele irá tragicamente até as últimas conseqüências porque entre essa miragem e o universo inteiro, com suas pedras, árvores e metais, ele crê e prefere a miragem. Vestirá suas asas de lona e se esborrachará diante dos parisienses atônitos porque num certo minuto se viu voando em imaginação, tão vivo e leve como se fosse um albatroz.

O inventor técnico precisa de um ambiente rico de poesia, de filosofia, de formas diversas, onde enriqueça sua capacidade psicológica de explorar analogias. Em outras palavras: numa sociedade tecnicalizada a técnica ficaria rapidamente estacionária, e logo depois regrediria. Há um mistério de vida vivida, em casa, nos jardins, nos teatros, em cada parafuso do Radar e em cada peça de um abridor de latas.

Há pessoas que falando em vacas, só tem presentes e prontas para entrar em jogo na mente, as idéias correlatas mais próximas: leite, manteiga, problemas de pecuária ou de dieta. Outras, porém, dispõem de milhares de coisas que viu, que ouviu, em que pensou, tudo pronto para cruzar rapidamente o céu do pensamento, produzindo na passagem colisões, explosões, cintilações de onde saem outros com órbitas. Prontamente soltará dentro do círculo luminoso a lembrança do deus Osíris, o Egito inteiro, um quadro e pedaços de um discurso demagogo ouvido na véspera.

Examine o leitor, detidamente, o seu receptor de rádio e admire a confluência de coisas que ele representa. A caixa veio da floresta; o ferro e o alumínio, o vidro e o cobre, das quatro partes do mundo; a resina, as fibras, a borracha, que tinham seu emprego em milhares de outros objetos, encontram-se finalmente dentro do receptor; a cera das abelhas que Virgílio cantou, e que há séculos e séculos ilumina os altares, serve agora para revestir as bobinas.

O inventor, como o poeta, é o homem que procura o novo na colisão das coisas distantes.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

A "emancipação"

Chesterton

Não nego que as mulheres foram ofendidas ou mesmo torturadas [no passado, quando cuidavam exclusivamente do lar e da família]; mas duvido que elas tenham sido tão torturadas quanto o são agora pela moderna tentativa absurda de fazê-las ao mesmo tempo rainhas do lar e funcionárias competitivas.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

O grande artista


Chesterton

Um homem não pode ser sábio o suficiente para ser um grande artista, sem ser sábio o suficiente para querer ser um grande filósofo. Um homem não pode ter a energia necessária para produzir boa arte, sem ter a energia necessária para ultrapassar isso. O pequeno artista se contenta com a arte, o grande artista não se contenta com nada a não ser tudo.

domingo, 27 de junho de 2010

O ego mental

Dostoievski

O homem é a tal ponto afeiçoado ao seu sistema e à dedução abstrata que está pronto a deturpar intencionalmente a verdade, a descrer de seus olhos e seus ouvidos apenas para justificar a sua lógica.

Voltando-se para o futuro



Chesterton

A mente moderna é voltada para o futuro por uma certa sensação de cansaço, não sem uma mistura de terror, com a qual contempla o passado... E o estímulo que a impulsiona tão avidamente, não é o amor pelo futuro. Pelo contrário, é o medo do passado. Medo não somente dos males do passado, mas também das virtudes do passado. A mente moderna não agüenta as insuportáveis virtudes da humanidade. No passado, houve tanta fé ardente que não podemos suportar, tantos heróis vigorosos que não podemos imitar, tantos grandes esforços, obras monumentais ou glórias militares que ao mesmo tempo nos parece sublimes e patéticas. O futuro é nosso refúgio diante da feroz competência dos nossos antepassados.

... Os homens inventam novos ideais porque não se atrevem com os antigos ideiais. Olham para frente com entusiasmo, porque têm medo de olhar para trás...

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Lançamento: Como Ler um Livro

A editora É Realizações lançará neste dia 25 de junho a grande obra Como Ler um Livro, de Mortimer Adler e Charles Van Doren, da qual eu me gabava de ter dois exemplares, um de 1974 (com o título de "A Arte de Ler") e outro de uma pequena tiragem em 2000. (Parece-me que há uma conspiração para derrubar minha coleção de livros raros.)

Há algum tempo fiz uma crítica a respeito desta obra e do autor, podem ler aqui.

Clique na imagem abaixo e depois aumente com outro clique com a lupa.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Lançamento: O Homem Eterno


A editora Mundo Cristão lançou neste mês de junho uma das grande obras de Chesterton chamada "O Homem Eterno", da qual eu me gabava de ter três exemplares da única (até então) e raríssima edição em português de 1934.

O livro é um esboço da história da humanidade contada de uma forma fascinante, com o bom-senso incomparável de Chesterton. Toda a história ali apresentada ronda sobre dois pontos, como ele mesmo diz no prefácio: a criatura chamada homem e o homem chamado Cristo.

Chesterton trata com elegância, bom-humor e esmagadora sensatez assuntos que vão desde o homem das carvernas até os tempos modernos. Nesta obra, você encontrará capítulos sobre mitologia, teoria da evolução, ciência, fé, religiões, etc., sempre num desenvolvimento que é como o desenrolar dos tempos.

Como dizia C. S. Lewis, elencando suas leituras, Chesterton "... era mais sensato que todos os outros modernos juntos...". Foi o que eu também pude comprovar ao conhecer as obras deste grande escritor. Há quem diga, como eu, que "O Homem Eterno" é sua obra-prima. É leitura obrigatória para todos!

Pra quem não conhece o autor, leiam aqui!


Um fato que me surpreendeu foi a criatividade da capa desta edição. Notem os dois ós formando o símbolo do infinito. Fantástico!

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Fanatismo moderno

Chesterton

Vejo com certa diversão, tanto na literatura Americana, quanto na Inglesa, o surgimento de um novo tipo de fanatismo. Este, não consiste em um homem estar convencido de que está certo; isso não é fanatismo, senão sanidade. O fanatismo consiste em um homem convencer-se de que outro deve estar errado em tudo, pelo fato de estar errado em alguma coisa; que ele está errado até em dizer que pensa com sinceridade que está certo.

Ver também: Fanatismo

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Os três tipos de homens

O texto abaixo é uma tradução que fiz de um dos ensaios de Chesterton, chamado "Three Types of Men", contido no livro Alarms and Discursions. Nesse ensaio, Chesterton classifica as pessoas em três tipos: o povo, os poetas e os intelectuais. Aqui, como sempre, ele levantará sua espada em defesa do senso-comum, elogiará os verdadeiros poetas e golpeará a arrogância dos intelectuais.
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Em termos gerais, há três classes de pessoas nesse mundo. A primeira classe é o Povo; possivelmente integra a classe mais ampla e de maior valor. Devemos a essa classe as cadeiras em que nos sentamos, as roupas que vestimos, as casas em que moramos e, de fato (quando chegamos a pensar nisso), provavelmente nós mesmos fazemos parte dessa classe. A segunda classe pode-se denominar, por conveniência, a dos Poetas. Em geral, são um mal para suas famílias, mas um bem para a humanidade. A terceira classe é a dos Professores e Intelectuais, algumas vezes descritos como os pensadores; e estes são uma praga e desolação para suas famílias e também para a humanidade. É claro que nessa classificação, às vezes, há sobreposições, como em qualquer outra classificação. Algumas boas pessoas são quase poetas e alguns maus poetas são quase professores. Porém essa divisão segue a linha de um segmento real da psicologia. Eu não a ofereço às pressas. Tem sido fruto de mais de dezoito minutos de reflexão séria e de investigação.

A classe que se denomina Povo (a que você e eu, com tanto orgulho, nos sentimos ligados), tem uma série de casuais e, no entanto, profundas suposições chamadas “senso-comum”, como a que diz que as crianças são encantadoras, ou que o anoitecer é melancólico e sentimental, ou que um homem lutando contra três é um belo espetáculo. Porém, esses sentimentos não são imperfeitos, nem sequer são simples. O encanto das crianças é muito sutil; é até complexo, ao ponto de ser quase contraditório. Em seu sentido mais simples, é uma mistura de alegria e impotência. O anoitecer desperta um sentimento que até mesmo na canção mais vulgar ou no mais desprezível casal de namorados, pode tornar-se um sentimento agradável. É estranhamente equilibrado entre tristeza e prazer. Também poderíamos descrever como um prazer que proporciona tristeza. O surto de cavalheirismo pelo qual todos nós admiramos o homem que luta contra a injustiça não é muito fácil de se definir separadamente; significa muitas coisas: compaixão, surpresa, drama, desejo de justiça, deleite de experimentar o desconhecido. As idéias do povo são realmente idéias muito sutis, mas ele não as expressa de maneiras sutil. Na verdade, não as expressam de modo algum, exceto naquelas ocasiões (agora muito raras) em que são dadas à insurreição ou ao derramamento de sangue.

Mas isso justifica, em outro sentido, o fato insensato da existência dos poetas. Os poetas são aqueles que partilham esses sentimentos populares, e podem expressá-los de uma maneira que pareçam as coisas estranhas e delicadas que realmente são. Os poetas fazem com que se eleve o humilde requinte da população. Onde o homem comum esconde a emoção mais original, dizendo “Um garotinho singular”, Victor Hugo teria escrito “L'art detre grand-pére” ("A arte de ser avô") [1]. Onde o corretor diz insensivelmente “a noite está chegando”, o senhor Yeats escreveria “Into The Twilight” ("No anoitecer")[2]. Onde o trabalhador comum poderia apenas balbuciar algo sobre ser corajoso e ter objetivos, Homero[3] mostrará um herói esfarrapado desafiando os príncipes em seus próprios banquetes. Os poetas elevam os sentimentos populares a um grau mais penetrante e esplêndido, porém, devemos lembrar sempre que eles são apenas guardiões dos sentimentos populares. Nenhum homem jamais escreveu qualquer boa poesia para mostrar que a infância foi terrível, ou que o anoitecer era brilhante e ridículo, ou que um homem era desprezível, porque havia duelado com outros três. Pessoas que afirmam isso são professores ou tolos.

Os poetas são aqueles que se erguem acima do povo, para compreendê-los. Naturalmente, a maioria dos poetas escreveu em prosa: por exemplo, Rabelais e Dickens. Os pedantes se erguem sobre o povo, recusando compreendê-lo, dizendo que suas obscuras e estranhas preferências são preconceitos e superstições. Os arrogantes fazem com que o povo se sinta estúpido. Os poetas fazem com que o povo se sinta mais sábio do que jamais poderia imaginar. Há muitos elementos estranhos nessa situação. O mais estranho de todos talvez seja o destino dos dois fatores na prática política. Muitas vezes, os poetas que abraçam e admiram o povo são apedrejados e crucificados. Aos tolos que depreciam o povo, geralmente são lhes dado terra e coroa. Por exemplo, a Câmara dos Comuns[4] tem um grande número de pedantes e, em comparação, pouquíssimos poetas.

Por poetas, como já tenho dito, não me refiro, de maneira alguma, aos indivíduos que escrevem poesia ou qualquer outra coisa. Refiro-me aos que, tendo cultura e imaginação, usam-nas para compreender e compartilhar o sentimento de seus companheiros, ao contrário daqueles que os usam para conseguir o que eles chamam de “subir a um plano superior”. Em termos simples, o poeta difere do povo por sua sensibilidade, os professores diferem do povo por sua insensibilidade. Eles não têm sutiliza e sensibilidade suficiente para simpatizar com a população. Seu intento é apenas contradizer o povo, ignorá-lo, conforme seu próprio plano egoísta, para mostrar a si mesmos que o povo está errado, independente do que diga. Esquecem que, na maioria das vezes, a ignorância é a intuição requintada de inocência.

Deixe-me dar um exemplo que dará ênfase à linha do debate. Abra o primeiro Comic Cuts[5] que encontrar e deixe seus olhos correrem adoravelmente sobre a primeira piada que se refere à sogra. Mas a piada, por ser uma piada para a população, será uma piada simples; a idosa senhora será alta e robusta e o marido, dominado pela mulher, será pequeno e covarde. Apesar disso, uma sogra não é uma idéia simples. É uma idéia muito sutil. O problema não é que ela seja grande e arrogante; freqüentemente é pequena e extraordinariamente amável. O problema da sogra é como o anoitecer: é metade uma coisa, metade outra.

Na entanto, a verdade do anoitecer, essa bela e até terna perturbação, nos pode ser transmitido tal como é, somente por um poeta e, neste caso, o poeta deverá ser um romancista muito sincero e penetrante, como George Meredith, ou o Sr. HG Wells[6], cuja "Ann Veronica"[7], acabo de ler com deleite. Eu acredito no que dizem os bons poetas e romancistas, porque eles seguem as pistas que as fadas dão no Comic Cuts. Mas suponha que apareça o professor e diga (como certamente o dirá), “A sogra é como qualquer um de nós. As considerações de gênero não devem perturbar a camaradagem. A questão da idade não deve influenciar no intelecto. A sogra é apenas mais uma das mentalidades. Temos que nos emancipar e nos livrar dessas hierarquias tribais”. Mas quando o professor dissesse isso (como sempre faz), eu lhe diria: “Senhor, você é mais grosseiro que o Comic Cuts. Você é mais vulgar e mais tolo do que um cantor desajeitado fora do ritmo. Você é mais rude e ignorante que a população. Essas pessoas simples alcançaram, pelo menos, uma matiz social e uma verdadeira distinção mental, ainda que só possam expressá-la desajeitadamente. Mas você é tão desajeitado, que não consegue alcançá-la. Se você realmente não consegue perceber que a mãe do noivo e da noiva têm algumas razões para desconfiar, então você não é nem bem educado, nem humano. Você não tem nenhuma sensibilidade pelos afetos profundos e duvidosos da humanidade". Melhor expor as dificuldade como o inculto, do que ser orgulhosamente inconsciente das dificuldades.

A mesma questão pode ser muito bem resumida no velho provérbio “Dois, são uma companhia, três, nenhuma”. Esse provérbio é a verdade exposta da maneira popular, ou seja, é a verdade exposta através de um erro. Certamente não é verdade que três não seja uma companhia. Três é uma excelente companhia. Três é o número ideal para uma perfeita camaradagem, como acontece nos "Três Mosqueteiros"[8]. Mas se você rejeita o provérbio inteiro e diz que dois ou três não faz diferença na camaradagem, se não consegue ver que três é um abismo maior entre dois e três do que entre três e três milhões, então sinto ter que lhe dizer que você pertence a terceira classe de seres humanos; que não terá amigos, nem dois nem três, e permanecerá sozinho gritando no deserto até a morte.

Notas do tradutor:


[1] Coleção de poemas deVictor Hugo, publicado em 1877. Neles, o poeta faz alusão à inocência e ao comportamento terno de seus netos.
[2] W.B. Yeats, poeta e dramaturgo irlandês.
[3] Poeta épico da Grécia Antiga, ao qual tradicionalmente se atribui a autoria dos poemas épicos Ilíada e Odisseia.
[4] Referência ao parlamento britânico, grossamente, equivalente à Câmara dos Deputados no Brasil.
[5] Primeira revista em quadrinhos, criada em 1890. Seu conteúdo era satírico-humorístico
[6] Ambos poetas e escritores ingleses.
[7] Romance de H.G.Wells, lançado em 1909.
[8] Romance de Alexandre Dumas, lançado em 1844.

domingo, 11 de abril de 2010

Vontade e Desejo

Desde muito tempo a diferença entre vontade e desejo desapareceu. A filosofia clássica tinha bem distinto esses conceitos e a distinção entre eles é bastante elucidativa.

Vontade é o apetite racional ou compatível com a razão. Desejo é o apetite sensível, não-racional e, muitas vezes, segundo Cícero, a concupiscência ou a cupidez desenfreada. A vontade, como apetite racional, está submetida aos preceitos da razão, à lógica. Assim é que Kant define a vontade como a faculdade de agir segundo a representação de regras.

Deve-se principalmente ao ceticismo o desapareceimento da diferença entre esses dois conceitos, pois tendo colocado várias barreiras à possibilidade do conhecimento[1] e à origem do conhecimento[2] , a caracterização da vontade como ato racional foi posta em dúvida.

No entanto, a psicologia moderna veio ratificar o pensamento clássico. Murphy, em sua Introdução à Psicologia, diz que "a vontade é o nome com o qual se designa um complexo processo interior que influencia nosso comportamento de tal modo que nos torna presas menos fácil da pura força bruta dos impulsos[3]".

Socrates disse que a causa do mal é a ignorância. Desta forma, a causa de um mal é uma ação não pensada ou pensada insuficientemente. Assim, Platão dá um exemplo muito ilustrativo da diferença entre querer racionalmente (vontade) e querer sem pensar ou pensando insuficientemente (desejo): "...tiranos não fazem o que querem (vontade, racional), embora façam o que lhes agrada ou bem lhes parece (desejo), visto que fazer o que se quer (vontade, racional), significa fazer o que se mostra bom ou útil, isto é, agir racionalmente".

"Penso, logo existo", disse Descartes, afirmando ser o "pensar" a certeza imediata da nossa existência. Não sei se Maine de Biran, quando disse "Quero, logo existo", preocupou-se na diferença entre vontade e desejo[4]. Caso sim, e o seu "Quero" signifique desejo, então, para ele, nosso apetite sensível é a certeza imediata da nossa existência; porém se esse "Quero", significa vontade, ele falha e deve descer um degrau e ficar com Descartes, já que "querer" como vontade é racional, então antes de querer pensa-se, logo, pensar vem antes, como afirmou Descartes.

Bem, quero almoçar! E esse "querer" é uma mistura de vontade e desejo. Estou com fome (desejo) e, porque vou praticar um exercício físico, quero me alimentar (vontade).


[1] Podemos apreender a ralidade?
[2] A realidade, se é apreendida, se dá por meio da razão, da experiência ou de ambos?
[3] Isto é, do Desejo.
[4] Na verdade, Biran estava tratando da realidade como resistência às nossas ações. O que é real opõe-se a mim; com o imaginário ,faço o que eu quiser.

sábado, 3 de abril de 2010

Amor livre?

Chesterton

Inventaram uma expressão; uma expressão que é como mistura de água e óleo em duas palavras: “amor livre”, como se um amante alguma vez já tivesse sido ou pudesse algum dia vir a sê-lo. É da natureza do amor prender a si próprio... Os sábios modernos oferecem ao amante, com uma risada falsa e amarga, as maiores liberdades e a mais completa irresponsabilidade... Dão-lhe todas as liberdades exceto a liberdade de vender a sua liberdade, que é a única que o amante deseja.

Temos um retrato vivo desse estado de coisas na brilhante peça de Bernard Shaw The Philanderer (“O galanteador”). Charteris é um homem sempre esforçando-se por ser um amante livre, que é o mesmo que esforçar-se por ser um solteiro casado ou um negro branco. Perambula numa busca faminta por certo tipo de excitação que só poderá obter quando tiver a coragem de parar de perambular.

terça-feira, 30 de março de 2010

Voracidade ou filosofia?

Machado de Assis

"Um só minuto do teu amor, e estou pronto a padecer um suplício et..." Uma traça bifara o resto da palavra; comeu o eterno e deixou o minuto. Não se pode saber a que atribuir essa preferência, se à voracidade, se à filosofia das traças. A primeira causa é mais provável; ninguém ignora que as traças comem muito.

terça-feira, 23 de março de 2010

O alento da leitura

Will Durant*

Se eu fosse um homem de dinheiro havia de ter muitos livros e regalar-me com encadernações macias ao tato e agradáveis à vista, obras impressas em bons papéis opacos, naqueles caracteres dos primitivos impressores. Vestiria meus ... [livros] de couro e ouro... Havia de ter minha biblioteca bem espaçosa, bem sombria e fresa, liberta da curiosidade alheia e do barulho, com voluptuosas poltronas das que convidam ao sonho, com lâmpadas de luz discreta aqui e ali — lâmpadas de santuários; e cada palmo das paredes seria recoberto com camadas da herança mental da nossa raça. E lá, a qualquer momento, minha mão e meu espírito dar-se-iam aos amigos de alma faminta e mãos limpas.

No centro de tal santuário de livros eu reuniria os Cem Melhores de toda a literatura educativa do mundo... No meio da mesa eu ergueria uma estante com os meus Cem Melhores. E vejo meus amigos confortavelmente sentados ali por algumas horas todas as semanas, manuseando com volúpia aquelas obras.

Queria também ... sentar-vos a essa mesa?**

[....]

Quando a vida se torna amarga, ou os amigos fogem, ou nossos filhos nos abandonam a casa para a fundação de outro lar, resta-nos o consolo de sentar-nos a esta mesa com Shakespeare e Goethe, e rir-nos do mundo com Rabelais, e de contemplar a sua beleza de outono com Keats. Porque estes são amigos que nos dão unicamente o melhor, que nunca nos refogem e que sempre estão à nossa espera. Depois de freqüentá-los por algum tempo e de humildemente ouvi-los falar, curados estaremos de nossas enfermidades e conheceremos a paz que vem da compreensão.

* Will Durant é mais um dos grandes intelectuais que a educação brasileira faz questão de esquecer. Dentre vários outros livros, passou mais de cinquenta anos escrevendo "A História da Civilização", composta de onze volumes.

** Pouco depois desse convite, Will Durant faz um desafio: "Podereis dispor de uma hora por dia? Dai-me sete horas de cada uma de vossas semanas e eu farei de vós um filósofo ou um erudito: em quatro anos estareis tão bem educado como qualquer Doutor em filosofia...", e no fim do texto faz a indicação, em ordem de leitura e inclusive de capítulos, de 151 livros que seriam lidos em quatro anos, com a dedicação de apenas uma hora por dia!

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

O be-a-bá do pensamento

Chesterton

O que as pessoas de hoje em dia precisam entender, é simplesmente que todo o argumento começa com uma suposição; isto é, com algo que você não duvida. Você pode, claro, se for de seu interesse, duvidar da suposição inicial do seu argumento, mas neste caso você está começando um argumento diferente com uma outra suposição inicial. Todo argumento começa com um dogma infalível, e tal dogma infalível só pode ser questionado recorrendo a algum outro dogma infalível; você nunca pode provar a sua primeira declaração ou esta não seria a sua primeira. Tudo isto é o be-a-bá do pensamento.

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Só alguém que não conhece nada de automóveis pode falar em automobilismo sem combustível; só alguém que não conhece nada da razão pode falar em raciocínio sem sólidos e indisputáveis primeiros princípios.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Mortimer Adler e "A arte de ler"


Andei revirando minhas estantes em busca de um livro de George Orwell e acabo dando de frente com "A arte de ler" de Mortimer Adler, livro raríssimo, com edição datada de 1974. Depois disso, sumiu da pauta das editoras, até que a Francisco Alves imprimiu pouquíssimas unidades em 2000, com o nome "Como ler um livro", cuja sorte permitiu-me também adquirir por um bom preço.

Abri, dei uma olhada nas minhas anotações marginais, folheei, li algumas marcações e pensei: "Por que se deixa um livro como esse tornar-se raro? Como as vozes que controlam o sistema educacional brasileiro deixam essa obra revolucionária sumir? Por que Mortimer Adler é um nome estranho nesse país, enquanto tornou-se uma espécie de símbolo da paideia americana e européia?"

Fui ao Google atrás de fotos do autor e eis que, sem intenção, encontro Olavo de Carvalho respondendo meus questionamentos:

"Fala-se muito, hoje, em educação para a cidadania. Mas só há duas maneiras de formar o cidadão: a educação liberal e a manipulação ideológica. Ou o sujeito aprende a absorver os dados da 'grande conversação' entre os espíritos superiores de todas as épocas e a tomar posição sabendo do que fala, ou aprende a falar direitinho como seus mestres mandaram, usando os termos com a conotação que desejam, segundo os interesses dominantes do dia. A opção brasileira está feita. Por isso, neste país, poucos souberam da vida ou da morte de Mortimer J. Adler".

Era justamente o que eu estava pensando.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Declínio da leitura

Allan Bloom
Quando reparei pela primeira vez no declínio da leitura, no final da década de 60, passei a perguntar às minhas enormes turmas dos anos preliminares, e a grupos de alunos mais novos, que livros realmente contavam para eles. A maioria ficava em silêncio, embaraçada com a pergunta. Para eles, era estranha a noção de livros como companheiros.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

O livre-pensador

Chesterton
Hoje em dia, com frequência, lemos sobre a bravura e a audácia com que alguns rebeldes atacam a antiga tirania ou uma superstição antiquada. Não há qualquer coragem em atacar coisas velhas e antiquadas, não mais do que em se oferecer para combater a avó de alguém. O homem verdadeiramente corajoso é aquele que desafia tiranias jovens como a manhã, e superstições frescas como as primeiras flores. O único e verdadeiro livre pensador é aquele cujo intelecto é tão livre do futuro quanto do passado. Ele se importa tão pouco com o que será quanto com o que foi; ele se importa apenas com o que deveria ser.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Intelectualidade e orgulho


Poucas coisas no mundo enchem mais o homem de orgulho e prepotência do que a intelectualidade. O super-homem de Nietzsche e de Shaw é um bom exemplo. O homem que despreza o “fraco”, ou melhor, que lhe dá atenção, a fim de eliminá-lo. Precisamos de mais intelectuais humildes, que notem o estranho fato de que quem olha como superior, de cima para baixo, não pode ver o que está acima dele.

Leis, regras, disciplina

Em um de seus livros, Chesterton diz que a maior parte da liberdade moderna tem sua raiz no medo. “Ao contrário do que se possa pensar, não é que somos corajosos demais, a ponto de não nos submetermos às leis; é que somos muito medrosos para nos submeter às responsabilidades”. Esta é uma daquelas verdades que só é percebida por alguém que parece estar sentado numa estrela fixa, observando de longe o redemoinho do mundo.

De fato, a liberdade que se reivindica hoje é uma espécie de “licença poética” para viver. No entanto, não é uma licença para adicionar um pouco de criatividade às regras, e sim para desprezar as regras.

Parece um paradoxo, mas “qual a vantagem de dizer à comunidade que ela tem toda a liberdade, exceto a liberdade de fazer regras? A liberdade de fazer regras é o que constitui um povo livre”. Nos lugares mais ecléticos, não posso dar minha opinião, pois o que penso pode ofender alguém, por causa da diversidade de pessoas. Já aprendi que os defensores da tolerância são intolerantes. A “liberdade” deles é opressora e reprime qualquer comportamento “diferente”. O que chamam “liberdade de expressão”, significa que não se deve tocar na maioria assuntos relevantes.

“Eu jamais poderia conceber ou tolerar nenhuma utopia que não me deixasse a liberdade que mais prezo, a liberdade de me obrigar”. O mundo moderno esqueceu que as leis são o que mantém a liberdade do homem. Preferiu engolir a fantasia de que as leis transformam os homens em escravos e servos. Não me importa se querem chamar as regras e a disciplina de servidão, mas “alguém dirá que haja homens mais fortes do que os de antigamente que foram dominados por sua filosofia e impregnados por sua religião? Se a servidão é melhor que a liberdade é uma questão a ser discutida. Mas que a servidão deles fez mais que nossa liberdade será difícil negar”.

Em pouco tempo, da maneira que estamos caminhando, perderemos não só a disciplina, mas também qualquer divertimento, pois “se eu aposto, devo ser obrigado a pagar, ou então não existe poesia na aposta. Se eu desafio, devo ser obrigado a lutar, ou não haveria poesia no desafio. Se eu prometo fidelidade, devo ser amaldiçoado quando sou infiel, caso contrário não há graça na promessa. [....] A dissolução de todos os contratos não só destruiria a moralidade, mas também acabaria com as apostas. Ora, apostas e jogos dessa natureza são apenas formas atrofiadas e distorcidas do instinto original do homem por aventura e romance. [....] E perigos, recompensas, punições e realizações de uma aventura precisam ser reais, caso contrário a aventura é apenas um pesadelo incerto e cruel”.

“A doutrina e a disciplina podem ser muros; mas são os muros de um pátio de recreio”.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

sábado, 16 de janeiro de 2010

A estupidez moderna

Gustavo Corção

O século XIV foi o sombrio e tumultuoso século da peste negra, da guerra de cem anos e da fragorosa ruína da civilização cristã. Nosso bravo século XX, em lugar da sombria nuvem pestífera que pairou cem anos sobre a cristandade agonizante, está sendo flagelado por uma outra nuvem, não menos sombria: a da estupidez satisfeita e otimista.

A multiplicação dos meios de informação em prejuízo dos meios de formação permite uma ilusão de saber, que é uma das formas mais impertinentes da tolice. Todo mundo pensa que sabe o que leu nas notícias ou viu na TV. Lendo a ida do homem à Lua, engolindo o fato, o farelo, a cinza, qualquer um se sente participante da coragem dos astronautas, quando na verdade ele não passa de um espectador que, de chinelo e pijama, engole voluptuosamente a informação que em nada eleva a sua inteligência nem purifica a sua vontade.

sábado, 9 de janeiro de 2010

Um diálogo entre Boris Casoy e Gustavo Corção

Um diálogo interessante, se pudesse ter acontecido, me veio ao pensamento ao ver o "incidente" ocorrido no Jornal da Band no primeiro dia do ano. O jornalista Boris Casoy fez um comentário mais do que infeliz, que se tornou público por uma falha técnica que deixou "vazar" o áudio do seu microfone enquanto passava-se para o intervalo.

Boris Casoy:


"Que merda: dois lixeiros desejando felicidades... do alto de suas vassouras... dois lixeiros... o mais baixo da escala do trabalho..."


Corção, na semana do gari, em 1980, escreveu no jornal o seguinte:

Gustavo Corção:


"[O gari é] seu irmão varredor que você de longe vê na sua roupa de fogo desbotado a tentar uma façanha maior do que as famosas de Hércules: limpar os caminhos dos homens".


Corção foi um dos maiores intelectuais que o Brasil já teve. Falando sobre sua antiga profissão de fiscal de lixeiros, ele comenta:

"[....] em vez de acompanhá-lo de longe como fiscal, acompanha-lo-ia de perto como lixeiro suplente ou como amigo. E assim as quatro horas de serviço encurtaram para nós ambos porque íamos andando e conversando.

[....] filosofávamos; e enquanto o burrico obediente ia arrastando devagar as sobras, os detritos e as sujeiras de uma longa rua adormecida, nós dois, irmãos pelo lixo, conversávamos sobre as coisas simples e luminosas que são os assuntos irresistíveis de todas as almas eternizadas pela humildade e pela pobreza.

Se a coluna das quintas e sábados não tivesse seus limites [....] todo o papel do jornal seria pouco para patentear a gratidão que carrego por tudo o que vi e ouvi e pelo que recebi de todos, a começar pelos humildes companheiros de perambulantes e fedorentas matinas".

Quantos vazamentos de áudio serão necessários para conhecermos aqueles em que confiamos para nos informar sobre o que acontece no mundo?